Bem vindos ao Adelós-Dêlos!

Ponto de discussões filosóficas de ouvintes do Lógos, recolhedoras do aberto...

... porque o invisível (adelós) por vezes fica visível (dêlos), pela escuta do que se diz com uma palavra.



segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

MITO E HISTÓRIA


"Festa das Marias" - de Yolanda Carvalho

O acesso à experiência mítica através do método historiográfico encontra como obstáculo justamente o suporte que garante a acesso ao investigador, a escrita que preserva a manifestação, mas não preserva o vigor da presença, que o pensamento historiográfico não consegue fazer viger justamente porque não é passível de representação num discurso racionalmente estruturado. Enquanto a filosofia defende para si a hegemonia da elaboração do conceito, e a teologia quer afirmar a verdade absoluta da revelação cristã, a ciência histórica busca no mito, como objeto, fatos que coincidam com o conceito de “fato” por ela operacionalizado.

(fonte: GADAMER, Hans-Georg. "Mito y Razón". Barcelona: Paidós, 1999, p. 42-43)

A MEDIDA E O SENTIDO


Dragão - Alejandro Xul Solar

A radiação luminosa, em suas cores, pode ser conhecida, medida e calculada em cumprimentos de ondas. O tempo pode ser conhecido, medido em horas, meses e séculos. A força de um vento pode ser calculada pela medida de sua velocidade. Este calculo nos informa sobre o vento e nos faz conhecê-lo. O mar, mapeado, pode além disso ser calculado em sua composição química, estudado em suas movimentações, prevendo ondas. As pedras podem ser analizadas até ao ponto de sua estrutura atômica.

Ontem, eu estava na praia. O sol aquecia minha pele e me fazia fechar levemente os olhos. À luz do sol, o mar brilhava, e os montes rochosos mostravam seu dezenho no fundo azul dos céus. As águas verdes batiam no ritmo estranhamente musical das ondas, abrindo-se em espuma branca. O vento aliviava um pouco o calor e trazia o cheiro distante dos oceanos, vindos sei lá de que terras, onde roçaram os ouvidos de alguém que, talvez, como eu, também escutou. Eu não conhecia ali, naquele momento, a luz, a água, as cores, as pedras, o vento e o tempo que se manifestava. Não era capaz de medí-los e calculá-los. Eles faziam sentido.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Excertos pensantes: encobrimento, terra e mito

A Ilíada XXIII, 244, fala de áidi keúthomai, de ser abrigado no Hades. Aqui a própria terra e o âmbito subterrâneo entram em relação com o abrigar e encobrir. O contexto essencial entre a morte e o encobrimento aparece aqui. A morte não é, para os gregos, como tampouco o nascimento, um processo "biológico". Nascimento e morte recebem sua essência a partir do âmbito do desencobrimento e encobrimento. Também a terra tem sua essência a partir do mesmo âmbito. Ela é o "entre", isto é, entre o ocultamento do subterrâneo e a luminosidade, o descobrimento do supraterreno (da abóboda celeste, ouranós). Para os romanos, no entanto, a terra, tellus, terra, é o seco, a terra em diferença do mar; essa distinção diferencia sobre que construção, colonização e instalação são possíveis, em distinção daqueles lugares onde elas são impossíveis. Terra se torna territorium, o âmbito de colonização como âmbito de comando. Na terra romana está presente o acento imperial, do que a gaîa e gê gregas nada têm.

As palavras gregas krýptein e krýptesthai (de onde crypta e cripta) significam a ação de encobrir resguardando. Krýptein se aplica, antes de tudo, à nýx, à noite. Similarmente, dia e noite em geral manifestam os eventos do descobrimento e do encobrimento. Uma vez que, entre os gregos, tudo o que é irrompe a partir do seu fundo, surge da essência do encobrimento e do desencobrimento, eles, por isso, falam da nýx e do ouranós, da noite e da luz do dia, sempre que querem expressar o começo do todo que é. O que é dito desse modo é o que primordialmente pode ser dito. É a fala autêntica, a palavra primordial. mýthos é a palavra grega que expressa o que pode ser dito antes de tudo o mais. A essência do próprio mýthos é determinada com base na alétheia. mýthos é o que revela, descobre e deixa ser visto; especificamente, ele deixa aparecer o que se mostra a si mesmo, previamente e em todas as coisas, como o que está presente em toda "presença" [Anwesen]. Somente onde a essência [Wesen] da palavra está fundada na alétheia, portanto entre os gregos, somente onde a palavra, assim fundada, como fala preeminente sustenta toda a poesia e pensamento, portanto entre os gregos, e somente onde poesia e pensamento são o fundo da relação primordial com o encoberto, portanto entre os gregos, somente lá encontramos o que dá significado ao nome grego mýthos, o "mito".

HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EdUSF, 2008. pp. 92-3.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

PLATÃO E O PÁRTENON


Um dos segredos do Pártenon, que o faz parecer perfeito, é justamente que algumas de suas linhas sejam curvas, como as dos degraus de entrada e as das colunas. As curvas dão a ilusão da perfeição do edifício, visto como um todo.

O Pártenon parece ser o que é, no aspecto de sua retidão escanhoada à perfeição, mas na verdade é cheio de curvas de raios agigantados que nos iludem.

Se Platão fosse tão platônico quanto a metafísica, deveria detestar o Pártenon.

POR QUE "SER" NÃO É UM GÊNERO EM ARISTÓTELES

(Eu desenhei este esquema para tentar facilitar a visualização. Espero é que não atrapalhe. Clique na imagem para vê-la em tamanho ampliado)


O ser não é um gênero, porque:

- O gênero é comum a muitos;

- O gênero se desmembra em espécies por diferenças acrescentadas;

- Das espécies pode-se se dizer que são necessariamente o seu gênero. Ex. A planta (espécie) é necessariamente um vivente (gênero);

- Contudo, não se pode dizer que o gênero é necessariamente uma sua espécie. Ex.: Um vivente não é necessariamente uma planta;

- Assim, a diferença específica não está contida no gênero.

- Supondo, então, que “ser” seja um gênero, que pela diferença específica “verdadeiro” se torne a espécie, “ser verdadeiro”;

- “verdadeiro” teria de estar “fora” (não estar contido) em “ser”, de modo que “verdadeiro” não seria, isto é, seria nada, o que anularia a própria espécie.

- portanto, “ser” não pode ser um gênero uma vez que apenas o nada está fora (não está contido) do âmbito de ser.

Visualização pelo conjunto:

- A (gênero) – A1, A2, A3 (espécies)

- Todo A1 é necessariamente (mas não somente) A, porém todo A não é necessariamente A1.

- Neste caso, o número (1, 2, 3) seria a diferença específica, que não está em A. Os números não podem estar contidos em A para que A seja gênero.

Supondo SER um gênero:

- S (gênero) – S1, S2, S3 (espécies)

- Todo S1 é necessariamente (mas não somente) S, porém todo S não é necessariamente S1.

- Neste caso, todo número (1, 2, 3) seria diferença específica, que não está em S. Os números não podem estar contidos em S para que S seja genro.

- Aqui está o problema, porque tudo que é está em S (SER, ou seja, está no conjunto ser). Fora de S há apenas NADA (ou seja, nada há, “não existe” em sentido corriqueiro, "não é" em sentido próprio). Não sendo, não se pode dizer que “é 1, 2 ou 3”. Portanto, não há nada fora de S, e este não pode ser um gênero, porquanto admite apenas NADA fora de si, ou seja, não pode ter diferenças específicas e por conseguinte não pode ter espécies. Assim, SER não pode ser um gênero.


É simples e até bobo, eu sei, mas tem gente que consegue explicar isso mas pensa como se não tivesse entendido.

domingo, 23 de novembro de 2008

Pela Igreja do Diabo

Aproveitando a deixa da última postagem, trago este ensaio, que dialoga com o conto do Machado.
Não há pretensão alguma de explicação ou mediação, apenas de tentar prolongar e manter o que ele diz.


A REINVENÇÃO DO DIVINO
Uma interpretação da questão humana em “A Igreja do Diabo”


A questão essencial de “A Igreja do Diabo” é a indefinição da essência humana em relação à divina, ironizada no texto pelo questionamento da instituição eclesiástica e do sagrado, do divino.
”A Igreja do Diabo” abre o livro de contos em que se encontra, chamado “Histórias sem Data”. Como diz o autor na “Advertência da 1.ª Edição”, o título não significa que se tratará de um amontoado de histórias não datadas, sem sua devida referência histórica de produção. “Histórias sem Data” significa histórias que se fazem e são feitas fora de um ponto no tempo, mas que acontecem num tempo próprio e originário. Não só é indeterminada, como gera as determinações. Dessa maneira, as histórias contadas se situam num plano mítico e misterioso, à maneira da volta à origem dos séculos efetuada por Brás Cubas em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que o regresso cronológico se transmuta em um mergulho às esferas originárias da existência e da realidade na iniciação com Pandora. Essas histórias não ocorrem num dia específico; sua historicidade decorre de sua permanência. São histórias que moldam o dia e tudo o que acontece nele.
No caso específico do conto, aquilo que é histórico se apresenta como a presença do sagrado consagrando a existência diária de cada homem, entre o divino e o diabólico. “A Igreja do Diabo” também torna significativo ser o conto que abre “Histórias sem Data”. Dentro da obra, o conto será o primeiro e também o criador dos demais, ao situar e fazer a gênese, entre Deus e Diabo, do homem contraditório e múltiplo. A imagem e dimensão da ordem cósmica tem seu correspondente na ordem dos contos no livro. Os contos posteriores, portanto, devem seu centro à primordial visão e construção da ambigüidade humana feita no conto inicial. Entretanto, estamos apenas mostrando o nexo entre o conto e o livro, a parte e seu todo. Como argumenta Ronaldes de Melo e Souza (2006), essa configuração tem respaldo em toda a obra machadiana, já que esta se caracteriza, no plano narrativo, pela configuração do narrador como ator dramático, que desempenha vários papéis, formando personagens e interpretações complexas do homem e do real.
Lembrando a raiz grega de história, historéo, que diz investigar, narrar e testemunhar, a ausência de data indica, primeiramente, a situação espaço-temporal indeterminada do que vai se narrar. Isso implica que cada história tem um historiador. No conto de Machado, esse jogo se faz através de um manuscrito beneditino, cuja história é recontada e ficcionalizada pelo narrador. O caráter radicalmente histórico se mostra no conto como criação e recriação: não há um fato verdadeiro, mas um acontecimento. A narrativa será conjugada a partir da perspectiva do Diabo, desde a idéia de fundar uma igreja até o momento final, quando Deus termina o processo de diagnose diabólica do homem.
Diferentemente de Brás Cubas, aqui será o Diabo que percorrerá os caminhos da descoberta da existência humana. Esse caminho de descoberta e tentativa de conquista será traçado pela idéia de montar uma igreja, análoga a oficial, mas que cultuasse ao Diabo e seus vícios defendidos, para ser a única igreja, a única religião:

— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Nessa reflexão do Diabo, incorporado pelo narrador, vemos o questionamento cômico da instituição clerical da igreja cristã, que perde todo seu ar solene e sagrado e se reduz a um conjunto de procedimentos. Tanto a ideologia cristã, quanto a diabólica aqui são intercambiáveis: dividem o mesmo lugar (igreja), os mesmos preceitos (Escritura). No fundo, o autor identifica as demais religiões, como sistemas teológicos que arrolam para si a verdade fundamental sobre o além-humano e o sagrado. Ora, pela idéia do Diabo, questiona-se se a religião se identifica com a transformação do sagrado e do espírito humano na igreja, que reúne como símbolo toda a materialidade da igreja secular. A igreja não indica a presença de Deus, mas antes sua ausência. Entendemos essa relação quando pensamos o cemitério, que faz presente uma ausência de vida; como sua raiz grega indica (LIDDELL & SCOTT, 1996), o cemitério marca algo (os mortos) para serem mantidos (da vida). A busca do Diabo consiste em fazer de sua igreja e sua teo-cosmo-socio-logia a reunião uniforme e sincrética da existência humana, exatamente porque se espelha nele, o Diabo. Por esse motivo é que o narrador ironizará ambas as igrejas e suas respectivas virtudes, porque não têm fundamento no homem concreto, mas antes em suas próprias idealidades divinas e sobre-humanas. O método ficcional para tal, como apontamos, é a narração a partir da visão das entidades divinas.
A intenção do Diabo de se separar e dominar as demais religiões provém não só da ironia do autor quanto à identidade profunda delas, mas de uma requisição do próprio Diabo expressa em sua etimologia: dia-ballein diz dar-se numa separação, numa cisão. Porém, como o conto mostra em sua consumação, o princípio de separação é também o mesmo de reunião. Fundar uma nova religião é, ainda, fundar uma religião, equivalendo-se todas, assim. O Diabo gera não só uma separação entre a sua religião e as demais, mas também entre a essência do homem em seu sistema e a essência do homem das demais. Para tal, dirige-se a Deus, para anunciar e impor-lhe sua noção de homem:

— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
(...)
— Só agora é que concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás dela virão as de seda pura...

Após afirmar, pela referência intertextual à figura mítica de Fausto, que não está a disputar um homem, mas a essência de todo homem, o Diabo explica a implementação de seu sistema criticando a ideologia cristã. Para suplantar as virtudes correntes, inverterá os seus preceitos. Se antes as virtudes cristãs se baseavam numa recusa à vontade e negação do corpo, o Diabo, por sua natureza, negará a negação, preconizando agora todas as “virtudes” terrenas, da vontade e do corpo. A metáfora das virtudes, as rainhas e suas capas prevê a possibilidade de tornar diabólicas as virtudes cristãs, de que dentro de todo virtuoso existe um pecador, aguardando ter sua capa de virtude descida e vestir a do pecado, assenhorando-se do lugar humano.
Após essa exposição, o Diabo recebe a seguinte resposta de Deus, o princípio unificante do cosmos: a existência do pecado e sua disseminação não é novidade, já que a igreja divina o tenta suprimir pela virtude. A tendência divisora diabólica e a unificadora divina entram num litígio teológico opositivo, sem chegar a nenhuma conclusão: cada ideologia se mantém firme diante e contra a outra. Há a ironia da tentativa da fundação de uma igreja diabólica mais uma vez, pois Deus diz ao Diabo que seu sistema repousa sobre idéias antigas e vagas. Porém, não só a do Diabo: ambas as igrejas se repelem diante da oposição desarmônica entre pecado e virtude.
O Diabo retorna para a terra e começa a disseminar sua moral, fundando sua igreja nos vícios humanos, entre eles o egoísmo supremo. A separação ou discórdia entre os homens é uma outra manifestação do próprio Diabo, por sua faceta divisora e abismal. Num primeiro momento, o Diabo vê uma ampla aceitação e prática das novas virtudes, mas logo percebe que as antigas virtudes continuam sendo praticadas, ainda que às escondidas. A virtude torna-se pecado e o pecado torna-se virtude. O que se sugere aqui é que o sagrado não se restringe à igreja e à máquina eclesiástica, e também é independente da ideologia ou meio. A experiência de epifania do real se manifesta na arte, na religião, no pensamento, no amor, de maneira própria a cada um. O sagrado, dessa forma, habita a dimensão da existência humana e seu mundo, tornando toda vida sagrada. A frustração do Diabo foi perceber que o âmbito da vida e existência humana é mais radical e contraditória, são multiplicidades em coabitação e tensão. A doutrina de sua igreja não circunscreve a essência do homem por excluir a identidade da diferença, ilhando cada homem em sua subjetividade irreflexiva radical, agindo totalmente em proveito próprio e sem virtudes. O Diabo não compartilha e nem pode compartilhar da essência cindida do homem, de ao mesmo tempo estar sempre próximo do outro e distante, daí a impossibilidade de terminar com a solidariedade: o homem não pode ser só distante, mas está sempre em conflito consigo mesmo e com os outros.
Após essa descoberta, o Diabo inquire Deus sobre seu fracasso. Deus aponta a reversibilidade de virtude e pecado e como esse movimento configura a “eterna contradição humana”. O divino reunirá os opostos do diabólico na unidade tensional do homem.
A igreja não traz a libertação do homem, mas a fuga da igreja é que traz sua libertação. O conto localiza o sagrado no lugar propriamente humano e não em uma entidade destacada da realidade. As figuras de Deus e do Diabo, ainda que potências distintas, são unas, e só possuem no homem seu princípio e realização últimas. Em outras palavras, Deus e Diabo sofrem uma inversão e passam, de fonte do sagrado a uma das possíveis realizações do mesmo. Eles compõem, em conjunto, a contradição do homem. Aqui, a ironização dos deuses demove-os de uma perfeição e completude, por terem uma identidade e escopo bem delimitados e prontos. A inventividade humana supera as ideologias e identidades unitárias de Deus e do Diabo e consegue se situar em um intermédio, a escadaria entre a igreja das graças e prazeres e a rua dos eventos corriqueiros. Só a ética humana concilia Deus e Diabo e lhes garante o sagrado.
Para além do bem e do mal, “a morada do homem não tem controle, a divina tem”, como diz o fragmento 78, do pensador Heráclito. No conto, demonstra-se que a morada do homem não tem controle pelo ponto de vista dos deuses e demônios, e dessa forma decaem em sua estaticidade. O criativo, a abertura para experiências humanizantes do sagrado não repousa em aderir a uma seita ou conjunto de regras, mas em sua a capacidade de criar mundo. Caso contrário, a essência do homem e sua felicidade poderiam ser prescritas e descobertas, feitas paradigmas. É pela impossibilidade de fazer o homem se assemelhar a Deus ou ao Diabo que suas igrejas falham. O homem dá e tira sentido, é criador e destruidor. Nessa diferença radical se identifica cada homem consigo mesmo e com seus irmãos. Mas não é algo que já lhe é simplesmente dado: o homem se humaniza ao decorrer de sua vida, fazendo dela seu mais sagrado bem, por não estar delimitada, apenas esboçada.

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. 4ª ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.
ASSIS, Machado de. “A Igreja do Diabo”. In: Obra Completa. vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
CASTRO, Manuel Antonio de. O Acontecer Poético – A História Literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
______. Tempos de Metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon
Press, 1996.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A IGREJA DO DIABO

(brilhante conto de Machado de Assis, do livro Histórias sem Data. Rio de de Janeiro: Garnier, 2003,7a edição)

CAPÍTULO I



DE UMA IDÉIA MIRÍFICA



Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



II

ENTRE DEUS E O DIABO



Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.





Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS



Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.





IV

FRANJAS E FRANJAS



A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O eterno problema

O eterno problema é que invertemos todos os princípios da política e infelizmente não mais a tratamos como coisa séria. Pensamos que ou tudo está perdido e não vale a pena falar, ou somos simpatizantes de partidos adeptos de ideologias massificadas. Inclusive os de esquerda, que por agregarem ideologias problemáticas, fazem seus adeptos caírem no erro do radicalismo vago.
A derrubada do sistema como alguns ainda insistem em querer, não é uma escolha, mas sim uma imposição tão precária como o sistema vigente, somos pouco eficazes em promover mudanças pequenas mas significativas. Como vamos então mudar o princípio de tudo em que estamos mergulhados? Queremos realmente mudar quando falamos em ideologias (diversas) ou apenas buscamos ser radicais adeptos das mudanças que nunca ocorrem?
Vamos sim buscar mudanças, mas mudanças pertinentes, coerentes e eficazes. Vamos buscar dentro da democracia a ruptura necessária, pois é só através de opinião, de pensamento particular que podemos ser nós mesmos. Ainda que essa mudança seja lenta é uma mudança válida. Vamos escolher nossos candidatos e não mais deixar que eles nos escolham, vamos ser mais participativos dentro de nossas possibilidades e fazer com que essas possibilidades se alarguem cada vez mais.
O que me preocupa, não é apenas a ignorância de muitos perante essa realidade, mas principalmente a ignorância da certeza burra, daquela que vem de fora e não de dentro. Votarmos nulo como forma de protesto é uma dessas certezas que fogem a verdadeira resolução do problema. Somos normalmente levados pelos “grupos” nos quais estamos inseridos e com isso nos isentamos da escolha mais importante, a de pensar por nós mesmos.
Não importam tanto assim os partidos, afinal é necessário (infelizmente) que cada candidato seja filiado a um partido para que possa concorrer a qualquer cargo público. Devemos, portanto, considerar a real concepção de política. Devemos dar os braços aos políticos que visam a política pela política. Ou como nos diria Platão, A POLÍTICA MESMA, pura em seus princípios, ética em sua ação.
Quero deixar claro que votar nulo não se trata do botão que apertamos na urna eleitoral, mas sim nos isentarmos da escolha da maneira que for, pois nos deixarmos levar por qualquer benefício próprio, não acompanharmos a campanha para que possamos fazer uma escolha consciente, escolhermos justificar a ausência do voto ao invés de comparecermos as urnas é nossa anulação de qualquer participação democrática.
Faço um apelo não apenas aos eleitores de pouco estudo que se deixam levar por promessas infundadas, discursos demagogos e medidas populistas, mas principalmente aos eleitores que se consideram letrados e possuem todas as condições sociais de fazerem sua escolha consciente, mas ainda assim optam pelo silêncio, pelo "protesto" do voto nulo, ou,pela renúncia de sua escolha. Vamos fazer de nossas posições, independente de quais forem elas, uma eterna possibilidade e não sua estagnação.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

RELAÇÃO E DISTINÇÃO ENTRE OS ENTRES - de Fernando Pessoa


Um ente, ou eu, qualquer existe essencialmente porque se sente, e sente-se porque se sente distinto de outro, ou de outros.

Cada ente, visto que é o que é por natureza, e por natureza sente que o é, tende a sentir-se o que é o mais completamente possível; e, como o que se sente, o sente através de distinguir-se dos outros, e, portanto, de estar em relação com os outros, para sentir-se o que é o mais completamente possível, deve sentir-se o que é o mais relativamente possível, ou relacionadamente, possível.

Para se sentir o que é o mais relativamente possível, força é que seja o mais relativo ou relacionado que pode ser, e que seja assim relativo ou relacionado com a maior perfeição, ou intensidade, possível. Quer isto dizer que, para um ente se sentir o mais possível a si-próprio ( o que quer dizer, para ser o mais possível ele-próprio) tem que sentir o mais absoluta e puramente possível a sua Relação. Ora a Relação só é absoluta quando é com Todo o relacionável, e só é inteira ou pura quando com cada relacionável é o mais possível, e o mais possível será mais puramente possível.

Assim, para se sentir puramente Si-próprio cada ente tem que estar em relação com todos, absolutamente todos, os outros entes; e com cada um deles na mais profunda das relações possíveis. Ora a mais profunda das relações possíveis e a relação de identidade. Por isso, para se sentir puramente a si-próprio, cada ente tem que sentir-se todos os outros, e absolutamente consubstanciado com todos os outros.

Ora isto não pode implicar fusão (de qualquer espécie) com os outros, pois assim o ente não se sentiria a si-próprio: sentir-se-á não-si-próprio, e não si-próprio-outros. Para não deixar de ser si-próprio, tem que continuar a ser distinto dos outros. Como, porém, nessa altura do relacionar-se, os outros são outros-ele, para ser distinto dos outros, ele tem que ser distinto dos outros-ele. Ser distinto dos outros-ele só pode dar-se sendo ele distinto de si-mesmo.

Para ser distinto de si-mesmo sem ser outros, porque nesse caso não seria ele-mesmo, nem ser ele-mesmo, pois então não se distinguiria, ele tem que ser nem outros nem ele-mesmo, ele tem que ser a Essência de outros e de ele-mesmo, porque assim, sendo essência d´ele mesmo, de si-mesmo se distingue – como as próprias palavras, em que isto se diz, distinguem -, e sendo essência comum d´ele e de outros não se distingue dos outros, ou antes se indistingue dos outros pelo próprio processo por que se distingue de si-mesmo.

Como, porém, o que há de comum entre ele e os outros é a Relação – porque pela Relação é que eles podem fundir-se ou entreser-se, e pela relação é que eles se distinguem – segue que é pela Relação que ele se distingue de si-mesmo. Este si-mesmo, porém, está nesta altura metafísica, já indistinto de outros, essa Relação, pela qual ele se distingue de si-mesmo, é a relação consigo-mesmo. A esta Relação chama-se Identidade.

Ora, se um ser é tanto mais ele-próprio quanto mais pura e abstratamente é ele-próprio, e ele-próprio é fundamentalmente, como se viu, a Relação consigo-mesmo, segue que será tanto mais puramente ele-próprio quanto mais pura for essa relação consigo mesmo.

Ora, como a mais pura Relação é, como já se viu, a pura identificação, a mais pura relação de um ser consigo mesmo será (não a identificação absoluta, pois essa seria a pura não-relação) mas o consistir a essência desse ente em ser Relação Pura, não sendo esse ente mais que Relação abstracta.

Ora se a Relação Pura, Abstracta, é que é a essência do ente, e se o ente puro é o ente puramente distinto de si-mesmo, segue que o ente puro é a Relação Pura puramente distinta de si-mesma.

Ora relação implica distinção. Temos, pois que a Relação pura puramente distinta de si-mesma será uma pura distinção puramente distinta de si-mesma. A distinção pura, porém, é já, por o que é, puramente distinta, visto que é a distinção pura. Por isso a Relação Pura, só por ser a Relação Pura, é pura distinção. Mas se é por isso que é pura distinção, segue que é pura distinção por ser pura identidade, pois que é pura distinção por ser puramente aquilo que é (que é Relação Pura). De aqui se conclui que pura identidade e pura distinção são a mesma coisa; isto é, que a Identidade é a mesma coisa que a Distinção.

Um ente qualquer é, pois, essencialmente identidade que é distinção.

(fonte: PESSOA, Fernando. Obra em prosa (em um volume). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, 3a edição. p. 529-530)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Condições condicionadoras

Como me considero apto a tomar decisões se constantemente me deparo com os frequentes obstáculos que cegam minha razão? Estou eu em condição de apontar o justo e justicar minha escolha? Não sou eu susceptível ao erro, a parcialidade, a corrupção, a ignorância? Me questiono sobre a real liberdade de escolha que nós homens possuímos, por estarmos presos a nossa limitada condição humana. A condição da condicionalidade, a condição da falta de condição.
Somos nós condicionados aos nossos meios, aos nossos problemas, aos nossos obstáculos, aos nossos cotidianos, aos nossos círculos de amigos. Sim, somos condicionalmente condicionados, assustadoramente acomodados, insensivelmente separados em nossas pobres condições.
O perfil de cada um de nós, não é o perfil do um de muitos, mas sim o perfil de muitos presentificado num um que some dentre as opiniões massacrantes e condicionadas, dentre um mundo igualitarista dentro da diversidade e separatista dentro da comum igualdade. Nos igualamos dentre as mesmas condições que obtemos e nos separamos de tudo aquilo que foge a igualdade, de tudo aquilo que se mostra diferente, de tudo aquilo que se faz estranho... nos diferenciamos do que não conhecemos e nem procuramos conhecer, mas julgamos do íntimo de nossas razões massificadas, pois nossas vozes caladas falam em meio aos gritos das multidões ignorantes.
Um grupo não se faz ignorante dentro de sua condição de grupo, mas sim por sua condição de eterna igualdade. Igualdade que nos faz querer ouvir sempre as mesmas coisas, falar sempre as mesmas coisas, reclamar sempre as mesmas coisas, sem pensarmos sobre o que se faz realmente importante, sem considerarmos as diferenças do lado de fora, sem valorizarmos as individuais diferenças do lado de dentro.
O que é diferente é tanto quanto o que é igual, a diferença provoca o uso da razão, do pensamento, não do julgamento. Julgamos porque erramos, porque somos pobres homens divididos em grupos precursores e perpetuadores da ignorância, do medo da mudança, da estranha diferença... Somos por isso, reflexo das escolhas erradas baseadas em parcialidades mesquinhas, encurralados em nossas tristes condições encerradas por nós mesmos, sedentos de mudanças, mas medrosos perante as inovações.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

*Carta enviada de uma mãe para outra mãe em SP, após noticiário na tv:

De mãe para mãe...

Vi seu enérgico protesto diante das câmeras de televisão contra a
transferência do seu filho, menor infrator, das dependências da FEBEM em
São Paulo para outra dependência da FEBEM no interior do Estado.

Vi você se queixando da distância que agora a separa do seu filho, das
dificuldades e das despesas que passou a ter para visitá-lo, bem como de
outros inconvenientes decorrentes daquela transferência.

Vi também toda a cobertura que a mídia deu para o fato, assim como vi que
não só você, mas igualmente outras mães na mesma situação que você, contam
com o apoio de Comissões Pastorais, Órgãos e Entidades de Defesa de
Direitos Humanos, ONGs, etc...

Eu também sou mãe e, assim, bem posso compreender o seu protesto.

Quero com ele fazer coro.

Enorme é a distância que me separa do meu filho.

Trabalhando e ganhando pouco, idênticas são as dificuldades e as despesas
que tenho para visitá-lo.

Com muito sacrifício, só posso fazê-lo aos domingos porque labuto,
inclusive aos sábados, para auxiliar no sustento e educação do resto da
família.

Felizmente conto com o meu inseparável companheiro, que desempenha, para
mim, importante papel de amigo e conselheiro espiritual.

Se você ainda não sabe, sou a mãe daquele jovem que o seu filho matou
estupidamente num assalto a uma vídeo locadora, onde ele, meu filho,
trabalhava durante o dia para pagar os estudos à noite.

No próximo domingo, quando você estiver abraçando, beijando e fazendo
carícias no seu filho, eu estarei visitando o meu e depositando flores no
seu humilde túmulo, num cemitério da periferia de São Paulo...

Ah! Ia me esquecendo: e também ganhando pouco e sustentando a casa, pode
ficar tranqüila, viu? que eu estarei pagando de novo, o colchão que seu
querido filho queimou lá na última rebelião da Febem.

No cemitério, nem na minha casa, NUNCA apareceu nenhum representante
destas 'Entidades' que tanto lhe confortam, para me dar uma palavra de
conforto, e talvez me indicar 'Os meus direitos' !'

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

MANOEL DE BARROS - entrevista com o maior poeta vivo do Brasil

Tudo que não invento é falso" - M. de Barros, de "Livro sobre Nada"

Muitos consideramos Manoel de Barros o maior poeta vivo do Brasil. O carinho pela linguagem, a ampla criatividade como correspondência ao simples, a liberdade obediente à palavra, são inúmeros os afluentes desta correnteza poética, que leva quem nela mergulha numa viagem por infâncias sem fim. Infância não como época sócio-biológica, mas sim - não poderia deixar de o ser quando poesia está em questão - como o que a própria palavra diz: aquele lugar originário em que não falamos, apenas escutamos. A leitura de Manoel de Barros é feita com os ouvidos.

O poeta sulmatogrossense em sua fazenda.

Há que o chame de "Guimarães Rosa da poesia". Este tipo de comparação, por si, apesar de superficial, não é de todo injustificado. Porque a "prosa" de Rosa nada tem de prosaica no mau sentido de "ordinária". É, como toda boa prosa, poética, mas não por se construir retoricamente com recursos formais numa espécie de narrativa em versos. É poética porque faz sempre a exigência de uma leitura poética, criativa. Mas criativa não quer dizer que o sentido fica a cargo da receptividade estética de um sujeito criador. Leitura criativa na medida em que é concreta, em que "concresce" entre leitor e texto: isto é o que chamo de "obra", este acontecimento entre leitor e texto, entre autor e texto, que é mundo e também história. É esta a dimensão poética de Manoel de Barros, também.

"Os poetas são sempre poetas da terra. Amam tanto a Linguagem que se identificaam com terra, sentido-lhe as vibrações pulsarem nas veias de suas poesias. Continuamente estão superando a dicotomia e alienação de homem e terra. (...) Para criar, não carecem de muito nem têm necessidade de grandeza ou de grandes quantidades. Numa haste de relva silvestre descobrem o infinito da Linguagem, que logo os transporta para a Terra-do-Sem-Fim, a paisagem do pensamento e da criação" - Emmanuel Carneiro Leão.

"Em torno fazia um pássaro
que seu canto finge com águas...
Você se beiradeava.
Eu me escorei o rosto nos silêncios."
(Manoel de Barros - de "Compêndio para uso dos pássaros")


A poética de Manoel de Barros é prosaica. Só que no bom sentido, daquilo que remete ao simples sem ser simplista, daquilo que não é pretensioso. Portanto, daquilo que diz sem "querer dizer" demais. Não é tampouco formalismo sem sentido, o batido invencionismo das vanguardas da retaguarda. Portanto, a poesia de Manoel de Barros apenas diz. E este apenas não é pouco, porque lá a palavra, que "apenas" diz, se sustenta tão-somente em ser palavra. Não precisa ser "termo", "metáfora", "conceito", "signo", "sema" e demais entidades abstratas epistêmico-estéticas, por mais concretas que se autoproclamem. Manuel de Barros devolve à palavra o orgulho de ser palavra. Não por ser ele um gênio, mas por estar mesmo na simplicidade do seu próprio dizer, tão simples que é capaz de escutar a palavra, com o trato mundificante de uma criança, de quem está na "terceira infância", como diz o poeta. A palavra como palavra: não há outra tarefa para a poesia.

"Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças.
Não assento aparelhos para escuta
E nem levanto ventos com alavanca.
(Minha boca me derrama?)
Desculpem-me a falta de ignorãças.
Não uso de brasonar.
Meu ser se abre como um lábio para moscas.
Não tenho competências para morrer.
O alheamento do luar na água é maior do que o meu.
O céu tem mais inseto do que eu?"
(M. de Barros - de "O Livro das Ignorãças")


Abaixo, uma das raras entrevistas concedidas pelo poeta, em quatro partes.





"Escrevo em idioleto manoelês archaico (1) (Idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que solene. (Para limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância par não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão.

(1) Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico. Estâmago para estômago. Celeusma para celeuma. Seja este um gosto que vem de detrás. Das minhas memórias fósseis. Ouvir estâmago produz uma ressonância atávica dentro de mim. Coisa que sonha de retravés."
- Manoel de Barros, de "Livro sobre Nada"




"Quis pegar
entre meus dedos
a Manhã.
Peguei vento."
- M. de Barros, de "Compêndio para uso dos Pássaros"





"(Manoel) - De fato, você chega no fim e você não sabe nada, porque não sabe o sentido da vida. Você não sabe nada. Você sabe discutir coisas aqui, mas o sentido da vida, essa incompletude que agente tem - nós somos incompletos, sentimos incompletude - só pode ser completada com "o mistério".

-Esse pedaço que é incompleto você só pode completar com "o mistério". É "o obscuro".

- É a coisa mais real.

(entrevistador) - O mistério tem uma consistência de pedra para você, não é?

(Manoel) - Tem."




sexta-feira, 10 de outubro de 2008

VOTE EM MIM, HO, HO, HOOOO!!!

Em algumas discussões sobre política um tanto informais, daquelas a que todo mundo se entrega com amigos de vez em quando, percebi que é muito comum as pessoas admirarem políticos por suas ações "beneficentes".



Beneficente é o que faz o bem. Com certeza um político "do bem", é melhor do que um "do mal". Mas a julgar por isso, há realmente muito poucos políticos "do mal" no Brasil. Por que então a situação - de modo todo próprio relacionada à política - vai tão mal no Brasil? Por que não se vê melhoras de relevância, já que há tantos políticos "do bem"?

Todos os candidatos são tão bondosos, cheios de amor para dar, que suspeito - é conjectura, mesmo - que em época de eleição deve cair o número de suicídios e haver grandes melhoras em quadros de depressão. Como nos sentimos tão amados em época de eleição! Cheios de amigos e pessoas que dedicam suas vidas a nós! Quanta caridade vemos ser feita por todos, quantas obras beneficentes!

Época de eleição é uma espécie de "natal para todos": adultos, velhos e crianças, ricos e pobres, heteros e homos, índios, brancos e negros, todos... à espera do papai noel vestido de candidato. Comportar-se como um bom menino é ter carência de alguma coisa, qualquer coisa. Só isso já justifica a visita do papai noel político, entrando pela chaminé da sua crise. A cartinha... bem, essa é o voto. Tem que fazer, fielmente, toda eleição, para o papai noel mais dadivoso.

É justamente o X do problema: político bom, não é somente o sujeito "do bem", porque no frigir dos ovos a imensa maioria dos seres humanos é gente de bem. Isso não quer dizer que estas pessoas sejam bons estadistas, bons políticos. Ser "bonzinho" é condição necessária, mas não suficiente. Política eficiente não se assemelha a tal "papainoelismo" político, que abunda no Brasil.

Fazer caridade pressupõe:
- pobreza;
- dependência do caridoso;
- manutenção da ausência de condições de ter dignidade por meios próprios;

Vejam bem: não sou contra caridade! É coisa muito nobre! Mas não precisamos de governadores, deputados, senadores e presidentes para isso! O que sou contra é confundir política com caridade! Projetos políticos sérios, eficientes e politicamente corretos (e não apenas moralmente corretos, como é o caso da caridade) são aqueles que não vinculam o beneficiado ao seu benfeitor, libertando-o na medida em que garante a dignidade conquistada por meios próprios.

Por exemplo, um projeto "político" que consista numa fundação beneficente, cujos recursos são obtidos por meio da venda de CDs, Livros, etc, de determinado político, muito embora seja um projeto "do bem", não é um projeto politicamente bom. Porque se as vendas dos CDs, Livros, etc, caem, cai também o projeto. Se o político morre, morre também o projeto. Aliás, isto pode funcionar como um mecanismo de retroalimentação publicitária, pois as pessoas, sabendo que ao comprarem determinado produto estão ajudando o projeto de tal político, tedem a comprar mais e sempre mais os produtos vendidos pelo político "do bem". No fim das contas, o nome do político é que recebe os louros da glória, quando na verdade é o dinheiro do comprador que sustenta o seu projeto, é com o dinheiro do povo que o político diz "eu faço!" com a cara mais deslavada, sem sequer mencionar a contribuição VITAL do povo comprador.

Um projeto político bom, deve ser do bem, mas deve estar vinculado ao Estado, uma instituição duradoura e pública, não a uma pessoa moral, a um indivíduo em particular. Isto é parte da democracia saudável. Um projeto político bom, falando em termos simples, não deve "dar o peixe", mas ensinar a usar a vara, o anzol, baratear a isca e garantir acesso ao rio ou ao mar.

Portanto, às vezes, um candidato "do bem" enquanto pessoa, é "mau" enquanto político, muito embora não seja um político "do mal". Devemos atentar para as sutilezas na hora de pensar em quem votar.

O Papai noel é bonzinho, tem bochechas rosadas e coração de mãe. Já o bom político pode até assustar as criancinhas, mas vai lhes dar muito mais do que um carrinho ou uma boneca uma vez por ano. Vai lhes dar condições de aprender e de construir o que quiserem, pois pode ser que estejam cansadas de bonecas e carrinhos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A LINGUAGEM NA POESIA - Uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl


(talvez uma das melhores formas de compreender a experiência de linguagem proposta por Heidegger seja fazer caminhadas em meio à natureza, tal como o filósofo da Floresta Negra costumava fazer)

Obs.: Dado o teor imagético e criativo da interpretação de H. da poética de Trakl, que resulta num texto filosófico extremamente poético, nenhuma interpretação sistemática é possível, pois mataria o próprio vigor do texto. Tento aqui uma interpretação também criativa e imagética, que creio ser correspondente ao esforço de H. na interpretação dos poemas de Trakl.



Busca-se encontrar o lugar da poesia, para tanto, é preciso aproximar-se de um poema. Mas a aproximação de um poema se persegue a partir de um aceno do lugar da poesia. Lugar é o ponto onde tudo convege [1]. Todo poema genuíno, assim, é um lugar de poesia, posto que nele converge toda uma poética. Do mesmo modo, “todo poeta só é poeta de uma única poesia” (27), mas não de um único poema, pois “A poesia de um poeta está sempre impronunciada. Nenhum poema isolado e nem mesmo o conjunto de seus poemas diz tudo. Cada poema fala, no entanto, a partir da totalidade dessa única poesia, dizendo-a sempre a cada vez.” (28) Isto é, a poesia é aquilo que está sempre por dizer, por ser recriada – porque cada interpretação a deixa brilhar “como numa primeira vez”(28) - , na medida em que a poesia de um poema é o sentido que eclode em cada interpretação obediente à sua poética. Esta poesia, é a fonte do que externamente se apreende nas teorias literárias como ritmo.

Há dois tipos de diálogo próprio com a poesia: 1. o diálogo poético; 2. o diálogo do pensamento, pela relação distinta e privilegiada de ambos com a linguagem, “(...) para que os mortais aprendam novamente a morar na linguagem.” (28). Este último é sempre demorado (28) e perigoso, porque pode calar o canto da poesia (29). “Não se trata de apresentar a visão de mundo característica de um poeta, nem de revisitar sua oficina [2] (29) – este diálogo pode no máximo escutar no poema uma questão e pro-curar o seu sentido.

I

Aqui começa o comentário de vários versos esparsos de vários poemas de Trakl. O texto é imagético e não muito linear porque muito criativo, encaminhando as seguintes interpretações: 1. O poeta em um estranho, cuja alma (essência) consiste numa travessia ligada à terra e aberta ao azul do céu, no lusco-fusco; 2. Este lusco-fusco não é apenas o crepúsculo (o declínio do ocidente, o fim da metafísica, o niilismo negativo), mas também a aurora (a possibilidade de um pensamento poético, algo novo) e, não sendo nem claridade, nem luz, este momento de indefinição é também, portanto, um momento de libertação; 3. Este referência entre luz e escuridão é criptofania do sagrado, cuja contemplação silenciosa permite reverter o que neste crepúsculo foi pensado ferina e selvagem oposição na suave reunião diferenciadora e acolhedora da manhã; 4. Por essa suave reunião, o animal (homem material) e o espiritual (homem ideal), se reúnem na figura do “animal azul selvagem” (36), os mortais, que buscam romper com a essência do homem (metafísica), numa busca que é como um percorrer (grego, Iénai¸indogermânico, ier, o ano) que articula tempo numa circularidade de primavera (manhã) e inverno (entardecer). Se aquela remete para um novo começo, para “(...) o lugar em que se resguarda e abriga uma outra nascente” (41), este outro aponta então não somente para o fim de uma ordem, para a ruptura, mas “(...) para um recolhimento, ou seja, para um lugar.” (42) Este é portanto, como nascimento e recolhimento, um desprendimento. Este seria um nome para o lugar da poesia de Trakl.

II

Desprender-se é um conduzir-se a um outro lugar, é abandonar-se para além da rota comum, pelo que o desprendido se considera normalmente como delirante [3]. O poeta é um delirante, não porque balbucia coisas sem sentido, mas sim porque mergulham, descem à profundeza do sentido, como o jovem Elis na poesia de Trakl , que não se confunde com a pessoa do poeta, assim como Zaratustra desce de montanha, sem se confundir com a pessoa de Nietzsche. Nesse sentido, esta descida não é simples decadentismo ou morte biológica, mas a busca pelo não-nascido que “(...) repousa quieto na essência do homem.” (45), que é o espantoso, o estranho, o aceno de toda travessia, o desprendimento.

Deste modo, o fim poético não é o término, assim como o princípio não é o começo. O fim é o vigor por que um movimento se dá e o seu princípio é aquilo que está a todo tempo regendo o movimento, do início ao fim. Este movimento, em sentido próprio, não se calcula a partir de uma linearidade temporal. Ele articula, necessariamente, também uma temporalidade em sentido próprio: o tempo do vir a ser do que é, o tempo da presença como ausência, o tempo que desprende passado e futuro. “O desprendimento reúne e recolhe esse mútuo pertencer não posteriormente, mas desdobrando o recolhimento já dominante.” (48)

Aquele que se lança ao desprendimento é tomado pelo divino, é entusiasmado. Isto não significa nada do “espiritualismo” ou “misticismo” que normalmente se representa quando se menciona possessão divina, como oposição ao materialismo. O poeta não entende “espírito” somente como sopro, que vai do sopro divino teológico ao sopro da razão científico [4]. Espírito, para o poeta é chama [5]. Por isso, o espírito é suave e confortante – acolhedor e amigo - ou destruidor e perigosos – licencioso e desgovernado, que causa o mal do “(...) tumulto chamejante na cegueira do êxtase (...)”.

Há uma referência fundamental entre o ânimo da alma e o inflamar do espírito – o espírito é que dá ânimo a alma, na medida em que por ele a alma se lança no destino, e assim alimenta o espírito.

Esta travessia é, assim, boa, mas também dolorosa e, por esta mesma disputa entre bem (o que deve e vem a ser) e dor é que ela é verdadeira. Deste modo “A dor não é repugnante nem proveitosa. A dor é o favorecimento do essencial em tudo que vigora.” (53) Deste modo, o desprendimento, como acontecimento entre dor e bem, se dá também como espírito, que reúne e recolhe. Neste sentido, o espírito do mal não se aniquila, nem se nega, mas se transforma, na medida em que seu ex-ceder-se remete para o acolhimento e não para a agitação. Este acolhimento é escuta. Pela escuta é que se pode seguir os passos do estrangeiro, do poeta, na medida em que se deixa o espírito da poesia, como canto do desprendimento, inflamar a alma numa escuta. É assim, como escuta, que primeiramente e na maior parte do tempo a poesia sempre se dá e, enquanto dizer, ela resguarda o essencial, o impronunciado. Este impronunciado se manifesta numa multivocidade que é mais que mera polissemia, porque seu sentido é unívoco e não uma confusão indeterminada. Mas também não é a exatidão técnica, porque se dizer aponta um caminho de sentido, abre uma vereda e convida ao estranho não-nascido, à travessia.

III

“Uma colocação acerca da poesia de Trakl nos mostra que ele é o poeta da terra ainda encoberta do entardecer, um poeta do Ocidente encoberto.(69) Há, portanto, dois ocidentes: o metafísico e o poético.



[1] Heidegger tira esse sentido do fato de em alemão “lugar” significar “ponta de lança”. Em português, temos o latim locus, lugar próprio, natural” (Benveniste, VIIE, I, 158), ou seja, o lugar da essência, o que sustenta a coisa naquilo que ela é, sua base que a permite repousar em seu ser, que se quem juntamente com lucus, “bosque sagrado” é oriundo do indo-europeu loukos “clareira” (Delamarre, LVI, 185), ou seja, este lugar não é uma cápsula fechada, mas uma abertura em que a coisa se ilumina, e está ex-posta no extra-ordinário, no sagrado.


[2] Não se busca, portanto, nem o conteúdo ideológico (visão de mundo), nem a forma estética (oficina), tendo a subjetividade do poeta (suas idéias do mundo, sua técnica poética) como horizonte. Quer se chegar ao lugar de onde emana sua poesia.

[3] Em português, a etimologia sustenta esse pensamento: pelo latim “delirare”, sair do sulco da charrua, sair da linha reta e, por extensão, mudar sentido ou perder a razão.

[4] Considerando-se que espírito “espiritual” e espírito “intelectual” ocupam a mesma posição no paradigma metafísico, entende-se porque pode haver uma coexistência, ainda que como oposição, entre espírito e matéria, mas não entre espiritual e intelectual, a menos que um determine o outro, dentro do paradigma metafísico. Ou seja, ou a ciência se baseia em deus (intelectual determinado pelo espiritual), ou a ciência comprova deus (espiritual determinado pelo intelectual), se nenhuma das duas situações se der (a 1ª caracteriza a Idade Média, a 2ª a metafísica moderna) então temos a verdade de apenas um dos dois, como no ateísmo humanista (racionalismo), ou no obscurantismo fundamentalista (misticismo).

[5] Não vejo uma oposição entre sopro (pneuma) e chama. Penso que há uma fundamental referência entre ambos, a partir da imagem de que é o sopro que alimenta e pode também apagar a chama, mas por outro lado isto condiz com o que H. diz na p. 50, que o espírito vigora na possibilidade da suavidade e da destrutividade, ou seja, do sopro suave que alimenta ou do forte que destrói – e o mal não seria o extinguir-se da chama, mas o espalhar-se descontrolado da chama – o subjetivismo. Então é provável que H. esteja enunciando mais diferença que oposição. A palavra portuguesa “entusiasmo” (estar no deus) diz desta chama que arde no coração dos mortais, sua alma (e a relação entre espírito e alma será explorada posteriormente por H.), na medida em que a chama pode morrer, e que se alimenta e vibra reluzindo por estar aberta ao sopro divino. Neste sentido, alma seria a chama e espírito, o sopro. Consigo compreender melhor desta maneira. Na metafísica, pensa-se este sopro como propriedade divina (medievo) ou intelectual humana (modernidade), enquanto a chama é associada às paixões da carne (pecado) ou às emoções e impulsos (romantismo e freudismo). Mas o sopro, a voz silenciosa, não soa no interior do homem, mas na natureza, entendida como physis, como o âmbito e força do que vem à luz, do que vem a ser e se manifestar. Só o homem, contudo, pode ouvi-la como voz silenciosa, só o homem percebe o sopro não como força e som, mas como sopro, algo como sentido do vento¸ que conduz a travessia, se me permitem a imagem. Em todo caso, esta passagem requer uma visita ao original, que pretendo fazer.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

QUE É METAFÍSICA? - DE MARTIN HEIDEGGER


HEIDEGGER, Martin. “Que é Metafísica?” (trad.: Ernildo Stein), in: Os Pensadores, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª edição.



Observações iniciais: Trata-se, o texto da preleção, de sua primeira aula na Universidade de Freiburg, de 24 de julho de 1929, sendo a 3ª publicação de Heidegger na maturidade (a partir de Ser e Tempo). Neste texto, a metafísica não é somente o tema, mas o próprio proceder do pensamento, que se interroga metafisicamente. Essa interrogação metafísica parte da existência do interrogante em questão: no caso, os homens de ciência na universidade – ali, na relação do homem com a ciência, ele encontra o nada, e não dá mais uma definição do que seja metafísica. Tendo levantado muitas objeções, H. acrescenta, posteriormente, como resposta, um posfácio (1943) que orienta a leitura da preleção, e uma introdução (1949), que recapitula seu pensamento em relação à preleção na época.

ESTUDO DO TEXTO

O Desenvolvimento de uma Interrogação Metafísica
Quando se pergunta pela metafísica, a resposta própria deve nos conduzir à metafísica, para isso, tanto a pergunta quanto a existência de quem questiona devem se mover no horizonte do que se questiona. Nossa existência é pautada pela ciência. A ciência é o modo de estar no mundo em que o homem se relaciona com o ente. Sendo o ente o que é algo e não simplesmente nada, a ciência, para delimitar seu objeto, precisa daquilo que rejeita: o nada.

Elaboração da Questão
Mas perguntar pelo nada não pode ser perguntar por alguma coisa. O nada é a própria a origem da negação do ente. O entendimento, que articula sempre negação e afirmação (o que algo é e o que algo não é), depende do nada, não podendo, portanto, determiná-lo. Quando perguntamos por algo, buscamos algo que nos falta. Mas só percebemos o que falta a partir do que se apresenta. Então, por outro lado, a negação do ente pressupõe a presença da totalidade do ente. A totalidade do ente se dá como tédio, quando tudo é indiferente, ou como alegria pela presença, quando tudo é pleno.. O nada se re-vela na angústia que, diferente do temor (que é temor de algo), é como que um temor diante de nada, quando não há apoio, ficamos sem chão e tudo parece nos escapar. Quando tudo nos escapa a angústia vêm ao nosso encontro, re-velando o nada. Na angústia, que acontece com o nada?

A Resposta à Questão
A angústia não apreende o nada: mas o re-vela na totalidade do ente. Não como se existisse a totalidade do ente e ao lado dela o nada. A angústia re-vela o nada porque o nada aparece como a totalidade do ente, sem se confundir com ela. O nada nadifica, mas isto não significa que o nada acabe com a totalidade do ente, mas sim o contrário, nadificar, “afirmar” o nada em que com-siste (é com) a totalidade do ente: é do nada que o que “vem a ser” vem: presença é estar suspenso no nada – apenas pelo nada podemos com-ceber (com o nada) o ente. O nada permite o pensamento – não é o que não se converte em objeto do pensamento, mas a possibilidade de se pensar. A negação, portanto, não origina o nada – mas o contrário – porque negação nega algo, e tudo que vem a ser algo, vem a ser o que é do nada (é com o nada: com-siste em nada). O nada é originário da negação . Esta angústia que re-vela o nada como o mesmo da totalidade do ente não ocorre nem é controlada por vontade humana (por isso mesmo é angústia) – é uma iminência de sermos convocados a nos percebermos suspensos no nada. Portanto, somos convocados ao pensamento, antes de o desejarmos . Quando pensamos a presença (a nossa mesma), suspensa no nada, “ultrapassamos” a totalidade do ente, nela mesma: isso se diz “trans-cendência” (tans-ente): meta-física.
Contudo, a metafísica clássica concebe o nada somente a partir do ente, e não também o ente a partir do nada : ex nihilo nihil fit. A dogmática cristã nega isso, mas de uma maneira que opõe o nada à totalidade do ente: Deus cria do nada. Deus (o fundamento, o ente supremo, o verdadeiro ser) é oposto ao nada, que é não ser. Em toda metafísica, de uma forma ou de outra, o nada é oposto ao ente verdadeiro, ao ser. Hegel equivale o ser ao nada, acabando com esta oposição, mas o faz na medida em que os iguala na sua indeterminação . Quando de fato o co-pertencimento de ser e nada se resguarda numa diferença fundamental: o ser sendo é finito, e não sendo é infinito – o nada sendo é infinito, e não sendo é finito: ser e nada são o mesmo mas exatamente pela diferença radical de sua co-determinação, e não de sua indeterminação. Daí o outro sentido que se pode dar ao axioma da metafísica antiga: ex nihilo nihil fit – do nada o nada se faz – ou seja – a totalidade do ente (que o nada per-faz) com-siste em nada.
A existência científica se caracteriza pela busca. Busca-se algo que falta. A falta só se percebe a partir do que se apresenta. O que se apresenta se apresenta a partir de nada. Quando se pensa o que se apresenta em sua consistência com o nada, pensa-se a transcendência, e não se pensa somente algo. A este pensar chamamos metafísica, a filosofia em sentido pleno. A metafísica, filosofia, pensamento, permite então o “por quê” que orienta a busca, na medida em que pensa o que se retrai no que se apresenta. A ciência depende, portanto, da metafísica para ser o que ela é. A nossa existência, na media em que é ex-sistênca, o é a partir de ser, o que significa dizer, é, sendo suspensa no nada. A metafísica não é portanto nem uma disciplina dentre tantas, nem uma especulação vaga, mas, na medida em que é transcendência , ela é nossa própria condição. Por isso Platão diz: “Na medida em que o homem existe, acontece, de certa maneira, o filosofar.” Mas o filosofar também não é um acontecimento automático, biológico , e sim o esforço extremo de sempre a todo momento tentar um salto que nos tira do automatismo das relações somente com o ente e nos lança onde já estamos: no nada. Este salto se dá, portanto, em in-sistir na pergunta: porque há o ente e não antes o nada?
POSFÁCIO

A ciência calcula o ente, a metafísica entifica o ser, e o pensar questiona o ente no ser. Enquanto a resposta a uma questão nos dá apenas o ente, ela não é uma resposta pensante. A resposta pensante é aquela que permanece, ao responder, na abertura da questão, isto é, ela mostra no ente que se dá o ser que se retrai.
Assim, em relação ao que se pensou nesta conferência, é errado objetar, concluído que: 1. trata-se de um niilismo, de afirmar que o nada é o único “objeto” do pensar; 2. de uma filosofia da angústia que elege um determinado sentimento que paralisa a ação da vontade do homem; 3. é irracionalista, contra a lógica, porque é baseada em sentimentos.
1. O que a preleção quer pensar é a referência fundamental entre ser e nada, em que o nada não é a negação do ente, mas o originário do ente que, sendo, oculta-se como nada e mostra-se como ente, isto é: o ser. 2. É angustiante o que nos foge ao controle, mas isso não paralisa nossa ação, porque nos convoca ao agir mais pleno, que requer a coragem para se pensar aquilo que não se domina. Mas angústia e coragem não são aí sentimentos, mas um próprio corresponder à com-vocação do ser que pro-voca o pensar. 3. a lógica é, originariamente, a experiência grega do ser. Como experiência do ser, ela nunca é somente uma relação entre entes: ele é onto-lógica, em que a reunião do logos não é um resultado. Nem por isso é menos rigoroso este pensamento ontológico fundamental, já que o rigor não é outra coisa que o esforço para ser ater a todo tempo ao fundamental do que se pensa.
O cálculo é apenas exato, não mais rigoroso: converte tudo em números, em que tudo se consome na progressão da contínua enumeração para cada vez mais de cada vez menos. Assim tem se a impressão de que se produz (cada vez mais) quando na verdade se consome (cada vez menos) – produção e consumo é o princípio do cálculo. O pensamento dito fundamental não apenas responde, mas corresponde ao apelo de que se origina – entregue à exigência deste apelo (sacrifício), este pensamento permanece aberto ao que não cessa de ser (liberdade), não se encontra preso ao que tão somente já é. Este apelo do ser é o silêncio de sua manifestação – este silêncio é a questão originária – que a todo tempo cala e exige uma resposta: linguagem. Corresponder a este apelo é a origem da palavra humana.
Renunciar ao ente em prol da abertura do ser: o sacrifício que liberta. Por isso, o sacrifício não admite o cálculo de sua utilidade ou inutilidade (filosofia/arte), apenas é algo incontornável para se consumar o que se é, para vir a ser. Este pensamento, dócil ao apelo do ser, se mostra como um cuidado para que a verdade do ser chegue à linguagem na palavra. “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado.” Poetar e pensar não são a mesma coisa, mas se co-originam ao re-conhecer, isto é, nascer-com sempre e a cada vez, que “O nada, enquanto o outro do ente, é o véu do ser.”

INTRODUÇÃO

Retorno ao Fundamento da Metafísica

Quando Descartes evoca a imagem estóica da Árvore da Filosofia, esquecendo, como os próprios estóicos, de ao menos mencionar o solo, mostra o completo esquecimento do ser na filosofia. Pois se a filosofia se propõe a pensar o ente em seu ser, ela de fato pensar o ser enquanto ente. Como origem e força de tudo que vêm a ser o que é, tudo o que emerge à luz da presença, o ser seria o próprio solo de onde brota e se nutre a Árvore da Filosofia. “A árvore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raízes da metafísica.” (253) O pensamento que pensa o ser, embora supere, não rejeita a metafísica. “A metafísica permanece a primeira instância da filosofia. Não alcança, porém, a primeira instância do pensamento.” (254). A metafísica é própria do homem na medida em que se o compreende como animal racional.
Mas neste pensamento do ser, de fato, é o ser que vem ao encontro do pensamento: é só a partir do apelo do ser que se lhe pode corresponder. Este pensamento não se constitui, contudo, numa modificação epistemológica da filosofia: não é uma nova disciplina no corpo doutrinário da filosofia. Não é também a descoberta de um novo fundamento, de uma base realmente inconcussa até agora não descoberta. O que se decide com esse pensamento é o pertencimento do homem ao ser, o ser humano, se esta relação poderá se abrir ou se permanecerá fechada numa determinação metafísica. Isso porque a metafísica, claro, pensa o ente, sim, a partir do desvelamento do ser, mas o representa e assim cala sua verdade, que é o desvelamento cuja essência é o velamento. O velamento permanece impensado na verdade do ser e no ser da verdade. Não ser quer retornar aos pré-socráticos, mas pensar este velamento que desde então não se enunciou – a metafísica não responde esta questão porque sequer a coloca como questão.
Portanto, o apelo do ser não se dá pela maior eficiência filosófica do homem, mas apenas no momento propício. O pensar é dócil ao ser e não o contrário, de modo que as considerações sobre a sua utilidade para a vida social do homem não têm sentido, porque o homem só é homem, tem vida social e cogita utilidades na medida em que pensa. A este pensar o ser, assim, convoca apenas e de modo pleno para o agir essencial que é pensar. Isso não significa que se negligencie o homem, porque a questão do ser envolve de modo especial o que o homem é. Isso implica questionar os conceito de homem como sujeito e como animal racional.
Presença (Dasein) é o nome desta referência do ser ao homem, em meio à abertura do velamento. Embora a palavra Dasein signifique na metafísica: existentia, actualitas, realitas, objetividade e existência corriqueira do homem, que repete o significado metafísco. Mas presença não é um outro nome para consciência (fenomenológica), nem a substituição de um elemento subjetivo por outro, antes, designa o âmbito da verdade do ser. Para as relações do homem, em Ser e Tempo, usa-se existência (Existenz) que, pensada, re-vela Dasein. Esta existência não é nem um externar-se de um substância nem um manifestar-se de um sujeito. Ela é um in-sistência, que é o cuidado e o esforço de se manter atento a e no âmbito de pensar – corresponder – à verdade do ser, numa tal correspondência que nos mostra o velamento como nosso horizonte: ser para a morte. “O ente que é ao modo da existência é o homem.” (257), se considerarmos que só existe na medida em que insiste. O que quer que o homem seja ele é sendo, isto é, no, pelo e para o ser.
Insistir articular sempre permanência (insistir como permanecer) e movimento (insistir como agir): portanto a experiência própria da verdade do ser é Tempo. Tão radical é esta experiência, que os nomes iniciais e finais para o ser, na metafísica, evocam o tempo: enérgeia e eterno retorno do mesmo. Compreender é esta experiência de ser e pensar que se dá na abertura . Enquanto abertura de um velamento, este âmbito da compreensão se chama sentido. O velamento é o que a metafísica não pensa quando pensar o ser e, assim, escapando-lhe o sentido, de fato pensa o ser apenas enquanto é, enquanto ente. Ontologia fundamental, portanto, não é um estudo de um outro sendo metafisicamente compreendido, só que mais fundamental. Quando a conferência se encerra com a pergunta pelo nada, que foi retirada de Leibniz e ganha no contexto da conferência um outro sentido, quer se indicar isso: que o sentido do nada que é-com o ser é outro do nada metafísico que é o mais simples e fácil conceito – é o nada que é a questão não só pela origem e mas pelo fim da metafísica.