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Ponto de discussões filosóficas de ouvintes do Lógos, recolhedoras do aberto...

... porque o invisível (adelós) por vezes fica visível (dêlos), pela escuta do que se diz com uma palavra.



quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A LINGUAGEM NA POESIA - Uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl


(talvez uma das melhores formas de compreender a experiência de linguagem proposta por Heidegger seja fazer caminhadas em meio à natureza, tal como o filósofo da Floresta Negra costumava fazer)

Obs.: Dado o teor imagético e criativo da interpretação de H. da poética de Trakl, que resulta num texto filosófico extremamente poético, nenhuma interpretação sistemática é possível, pois mataria o próprio vigor do texto. Tento aqui uma interpretação também criativa e imagética, que creio ser correspondente ao esforço de H. na interpretação dos poemas de Trakl.



Busca-se encontrar o lugar da poesia, para tanto, é preciso aproximar-se de um poema. Mas a aproximação de um poema se persegue a partir de um aceno do lugar da poesia. Lugar é o ponto onde tudo convege [1]. Todo poema genuíno, assim, é um lugar de poesia, posto que nele converge toda uma poética. Do mesmo modo, “todo poeta só é poeta de uma única poesia” (27), mas não de um único poema, pois “A poesia de um poeta está sempre impronunciada. Nenhum poema isolado e nem mesmo o conjunto de seus poemas diz tudo. Cada poema fala, no entanto, a partir da totalidade dessa única poesia, dizendo-a sempre a cada vez.” (28) Isto é, a poesia é aquilo que está sempre por dizer, por ser recriada – porque cada interpretação a deixa brilhar “como numa primeira vez”(28) - , na medida em que a poesia de um poema é o sentido que eclode em cada interpretação obediente à sua poética. Esta poesia, é a fonte do que externamente se apreende nas teorias literárias como ritmo.

Há dois tipos de diálogo próprio com a poesia: 1. o diálogo poético; 2. o diálogo do pensamento, pela relação distinta e privilegiada de ambos com a linguagem, “(...) para que os mortais aprendam novamente a morar na linguagem.” (28). Este último é sempre demorado (28) e perigoso, porque pode calar o canto da poesia (29). “Não se trata de apresentar a visão de mundo característica de um poeta, nem de revisitar sua oficina [2] (29) – este diálogo pode no máximo escutar no poema uma questão e pro-curar o seu sentido.

I

Aqui começa o comentário de vários versos esparsos de vários poemas de Trakl. O texto é imagético e não muito linear porque muito criativo, encaminhando as seguintes interpretações: 1. O poeta em um estranho, cuja alma (essência) consiste numa travessia ligada à terra e aberta ao azul do céu, no lusco-fusco; 2. Este lusco-fusco não é apenas o crepúsculo (o declínio do ocidente, o fim da metafísica, o niilismo negativo), mas também a aurora (a possibilidade de um pensamento poético, algo novo) e, não sendo nem claridade, nem luz, este momento de indefinição é também, portanto, um momento de libertação; 3. Este referência entre luz e escuridão é criptofania do sagrado, cuja contemplação silenciosa permite reverter o que neste crepúsculo foi pensado ferina e selvagem oposição na suave reunião diferenciadora e acolhedora da manhã; 4. Por essa suave reunião, o animal (homem material) e o espiritual (homem ideal), se reúnem na figura do “animal azul selvagem” (36), os mortais, que buscam romper com a essência do homem (metafísica), numa busca que é como um percorrer (grego, Iénai¸indogermânico, ier, o ano) que articula tempo numa circularidade de primavera (manhã) e inverno (entardecer). Se aquela remete para um novo começo, para “(...) o lugar em que se resguarda e abriga uma outra nascente” (41), este outro aponta então não somente para o fim de uma ordem, para a ruptura, mas “(...) para um recolhimento, ou seja, para um lugar.” (42) Este é portanto, como nascimento e recolhimento, um desprendimento. Este seria um nome para o lugar da poesia de Trakl.

II

Desprender-se é um conduzir-se a um outro lugar, é abandonar-se para além da rota comum, pelo que o desprendido se considera normalmente como delirante [3]. O poeta é um delirante, não porque balbucia coisas sem sentido, mas sim porque mergulham, descem à profundeza do sentido, como o jovem Elis na poesia de Trakl , que não se confunde com a pessoa do poeta, assim como Zaratustra desce de montanha, sem se confundir com a pessoa de Nietzsche. Nesse sentido, esta descida não é simples decadentismo ou morte biológica, mas a busca pelo não-nascido que “(...) repousa quieto na essência do homem.” (45), que é o espantoso, o estranho, o aceno de toda travessia, o desprendimento.

Deste modo, o fim poético não é o término, assim como o princípio não é o começo. O fim é o vigor por que um movimento se dá e o seu princípio é aquilo que está a todo tempo regendo o movimento, do início ao fim. Este movimento, em sentido próprio, não se calcula a partir de uma linearidade temporal. Ele articula, necessariamente, também uma temporalidade em sentido próprio: o tempo do vir a ser do que é, o tempo da presença como ausência, o tempo que desprende passado e futuro. “O desprendimento reúne e recolhe esse mútuo pertencer não posteriormente, mas desdobrando o recolhimento já dominante.” (48)

Aquele que se lança ao desprendimento é tomado pelo divino, é entusiasmado. Isto não significa nada do “espiritualismo” ou “misticismo” que normalmente se representa quando se menciona possessão divina, como oposição ao materialismo. O poeta não entende “espírito” somente como sopro, que vai do sopro divino teológico ao sopro da razão científico [4]. Espírito, para o poeta é chama [5]. Por isso, o espírito é suave e confortante – acolhedor e amigo - ou destruidor e perigosos – licencioso e desgovernado, que causa o mal do “(...) tumulto chamejante na cegueira do êxtase (...)”.

Há uma referência fundamental entre o ânimo da alma e o inflamar do espírito – o espírito é que dá ânimo a alma, na medida em que por ele a alma se lança no destino, e assim alimenta o espírito.

Esta travessia é, assim, boa, mas também dolorosa e, por esta mesma disputa entre bem (o que deve e vem a ser) e dor é que ela é verdadeira. Deste modo “A dor não é repugnante nem proveitosa. A dor é o favorecimento do essencial em tudo que vigora.” (53) Deste modo, o desprendimento, como acontecimento entre dor e bem, se dá também como espírito, que reúne e recolhe. Neste sentido, o espírito do mal não se aniquila, nem se nega, mas se transforma, na medida em que seu ex-ceder-se remete para o acolhimento e não para a agitação. Este acolhimento é escuta. Pela escuta é que se pode seguir os passos do estrangeiro, do poeta, na medida em que se deixa o espírito da poesia, como canto do desprendimento, inflamar a alma numa escuta. É assim, como escuta, que primeiramente e na maior parte do tempo a poesia sempre se dá e, enquanto dizer, ela resguarda o essencial, o impronunciado. Este impronunciado se manifesta numa multivocidade que é mais que mera polissemia, porque seu sentido é unívoco e não uma confusão indeterminada. Mas também não é a exatidão técnica, porque se dizer aponta um caminho de sentido, abre uma vereda e convida ao estranho não-nascido, à travessia.

III

“Uma colocação acerca da poesia de Trakl nos mostra que ele é o poeta da terra ainda encoberta do entardecer, um poeta do Ocidente encoberto.(69) Há, portanto, dois ocidentes: o metafísico e o poético.



[1] Heidegger tira esse sentido do fato de em alemão “lugar” significar “ponta de lança”. Em português, temos o latim locus, lugar próprio, natural” (Benveniste, VIIE, I, 158), ou seja, o lugar da essência, o que sustenta a coisa naquilo que ela é, sua base que a permite repousar em seu ser, que se quem juntamente com lucus, “bosque sagrado” é oriundo do indo-europeu loukos “clareira” (Delamarre, LVI, 185), ou seja, este lugar não é uma cápsula fechada, mas uma abertura em que a coisa se ilumina, e está ex-posta no extra-ordinário, no sagrado.


[2] Não se busca, portanto, nem o conteúdo ideológico (visão de mundo), nem a forma estética (oficina), tendo a subjetividade do poeta (suas idéias do mundo, sua técnica poética) como horizonte. Quer se chegar ao lugar de onde emana sua poesia.

[3] Em português, a etimologia sustenta esse pensamento: pelo latim “delirare”, sair do sulco da charrua, sair da linha reta e, por extensão, mudar sentido ou perder a razão.

[4] Considerando-se que espírito “espiritual” e espírito “intelectual” ocupam a mesma posição no paradigma metafísico, entende-se porque pode haver uma coexistência, ainda que como oposição, entre espírito e matéria, mas não entre espiritual e intelectual, a menos que um determine o outro, dentro do paradigma metafísico. Ou seja, ou a ciência se baseia em deus (intelectual determinado pelo espiritual), ou a ciência comprova deus (espiritual determinado pelo intelectual), se nenhuma das duas situações se der (a 1ª caracteriza a Idade Média, a 2ª a metafísica moderna) então temos a verdade de apenas um dos dois, como no ateísmo humanista (racionalismo), ou no obscurantismo fundamentalista (misticismo).

[5] Não vejo uma oposição entre sopro (pneuma) e chama. Penso que há uma fundamental referência entre ambos, a partir da imagem de que é o sopro que alimenta e pode também apagar a chama, mas por outro lado isto condiz com o que H. diz na p. 50, que o espírito vigora na possibilidade da suavidade e da destrutividade, ou seja, do sopro suave que alimenta ou do forte que destrói – e o mal não seria o extinguir-se da chama, mas o espalhar-se descontrolado da chama – o subjetivismo. Então é provável que H. esteja enunciando mais diferença que oposição. A palavra portuguesa “entusiasmo” (estar no deus) diz desta chama que arde no coração dos mortais, sua alma (e a relação entre espírito e alma será explorada posteriormente por H.), na medida em que a chama pode morrer, e que se alimenta e vibra reluzindo por estar aberta ao sopro divino. Neste sentido, alma seria a chama e espírito, o sopro. Consigo compreender melhor desta maneira. Na metafísica, pensa-se este sopro como propriedade divina (medievo) ou intelectual humana (modernidade), enquanto a chama é associada às paixões da carne (pecado) ou às emoções e impulsos (romantismo e freudismo). Mas o sopro, a voz silenciosa, não soa no interior do homem, mas na natureza, entendida como physis, como o âmbito e força do que vem à luz, do que vem a ser e se manifestar. Só o homem, contudo, pode ouvi-la como voz silenciosa, só o homem percebe o sopro não como força e som, mas como sopro, algo como sentido do vento¸ que conduz a travessia, se me permitem a imagem. Em todo caso, esta passagem requer uma visita ao original, que pretendo fazer.

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