Bem vindos ao Adelós-Dêlos!

Ponto de discussões filosóficas de ouvintes do Lógos, recolhedoras do aberto...

... porque o invisível (adelós) por vezes fica visível (dêlos), pela escuta do que se diz com uma palavra.



domingo, 23 de novembro de 2008

Pela Igreja do Diabo

Aproveitando a deixa da última postagem, trago este ensaio, que dialoga com o conto do Machado.
Não há pretensão alguma de explicação ou mediação, apenas de tentar prolongar e manter o que ele diz.


A REINVENÇÃO DO DIVINO
Uma interpretação da questão humana em “A Igreja do Diabo”


A questão essencial de “A Igreja do Diabo” é a indefinição da essência humana em relação à divina, ironizada no texto pelo questionamento da instituição eclesiástica e do sagrado, do divino.
”A Igreja do Diabo” abre o livro de contos em que se encontra, chamado “Histórias sem Data”. Como diz o autor na “Advertência da 1.ª Edição”, o título não significa que se tratará de um amontoado de histórias não datadas, sem sua devida referência histórica de produção. “Histórias sem Data” significa histórias que se fazem e são feitas fora de um ponto no tempo, mas que acontecem num tempo próprio e originário. Não só é indeterminada, como gera as determinações. Dessa maneira, as histórias contadas se situam num plano mítico e misterioso, à maneira da volta à origem dos séculos efetuada por Brás Cubas em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que o regresso cronológico se transmuta em um mergulho às esferas originárias da existência e da realidade na iniciação com Pandora. Essas histórias não ocorrem num dia específico; sua historicidade decorre de sua permanência. São histórias que moldam o dia e tudo o que acontece nele.
No caso específico do conto, aquilo que é histórico se apresenta como a presença do sagrado consagrando a existência diária de cada homem, entre o divino e o diabólico. “A Igreja do Diabo” também torna significativo ser o conto que abre “Histórias sem Data”. Dentro da obra, o conto será o primeiro e também o criador dos demais, ao situar e fazer a gênese, entre Deus e Diabo, do homem contraditório e múltiplo. A imagem e dimensão da ordem cósmica tem seu correspondente na ordem dos contos no livro. Os contos posteriores, portanto, devem seu centro à primordial visão e construção da ambigüidade humana feita no conto inicial. Entretanto, estamos apenas mostrando o nexo entre o conto e o livro, a parte e seu todo. Como argumenta Ronaldes de Melo e Souza (2006), essa configuração tem respaldo em toda a obra machadiana, já que esta se caracteriza, no plano narrativo, pela configuração do narrador como ator dramático, que desempenha vários papéis, formando personagens e interpretações complexas do homem e do real.
Lembrando a raiz grega de história, historéo, que diz investigar, narrar e testemunhar, a ausência de data indica, primeiramente, a situação espaço-temporal indeterminada do que vai se narrar. Isso implica que cada história tem um historiador. No conto de Machado, esse jogo se faz através de um manuscrito beneditino, cuja história é recontada e ficcionalizada pelo narrador. O caráter radicalmente histórico se mostra no conto como criação e recriação: não há um fato verdadeiro, mas um acontecimento. A narrativa será conjugada a partir da perspectiva do Diabo, desde a idéia de fundar uma igreja até o momento final, quando Deus termina o processo de diagnose diabólica do homem.
Diferentemente de Brás Cubas, aqui será o Diabo que percorrerá os caminhos da descoberta da existência humana. Esse caminho de descoberta e tentativa de conquista será traçado pela idéia de montar uma igreja, análoga a oficial, mas que cultuasse ao Diabo e seus vícios defendidos, para ser a única igreja, a única religião:

— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Nessa reflexão do Diabo, incorporado pelo narrador, vemos o questionamento cômico da instituição clerical da igreja cristã, que perde todo seu ar solene e sagrado e se reduz a um conjunto de procedimentos. Tanto a ideologia cristã, quanto a diabólica aqui são intercambiáveis: dividem o mesmo lugar (igreja), os mesmos preceitos (Escritura). No fundo, o autor identifica as demais religiões, como sistemas teológicos que arrolam para si a verdade fundamental sobre o além-humano e o sagrado. Ora, pela idéia do Diabo, questiona-se se a religião se identifica com a transformação do sagrado e do espírito humano na igreja, que reúne como símbolo toda a materialidade da igreja secular. A igreja não indica a presença de Deus, mas antes sua ausência. Entendemos essa relação quando pensamos o cemitério, que faz presente uma ausência de vida; como sua raiz grega indica (LIDDELL & SCOTT, 1996), o cemitério marca algo (os mortos) para serem mantidos (da vida). A busca do Diabo consiste em fazer de sua igreja e sua teo-cosmo-socio-logia a reunião uniforme e sincrética da existência humana, exatamente porque se espelha nele, o Diabo. Por esse motivo é que o narrador ironizará ambas as igrejas e suas respectivas virtudes, porque não têm fundamento no homem concreto, mas antes em suas próprias idealidades divinas e sobre-humanas. O método ficcional para tal, como apontamos, é a narração a partir da visão das entidades divinas.
A intenção do Diabo de se separar e dominar as demais religiões provém não só da ironia do autor quanto à identidade profunda delas, mas de uma requisição do próprio Diabo expressa em sua etimologia: dia-ballein diz dar-se numa separação, numa cisão. Porém, como o conto mostra em sua consumação, o princípio de separação é também o mesmo de reunião. Fundar uma nova religião é, ainda, fundar uma religião, equivalendo-se todas, assim. O Diabo gera não só uma separação entre a sua religião e as demais, mas também entre a essência do homem em seu sistema e a essência do homem das demais. Para tal, dirige-se a Deus, para anunciar e impor-lhe sua noção de homem:

— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
(...)
— Só agora é que concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás dela virão as de seda pura...

Após afirmar, pela referência intertextual à figura mítica de Fausto, que não está a disputar um homem, mas a essência de todo homem, o Diabo explica a implementação de seu sistema criticando a ideologia cristã. Para suplantar as virtudes correntes, inverterá os seus preceitos. Se antes as virtudes cristãs se baseavam numa recusa à vontade e negação do corpo, o Diabo, por sua natureza, negará a negação, preconizando agora todas as “virtudes” terrenas, da vontade e do corpo. A metáfora das virtudes, as rainhas e suas capas prevê a possibilidade de tornar diabólicas as virtudes cristãs, de que dentro de todo virtuoso existe um pecador, aguardando ter sua capa de virtude descida e vestir a do pecado, assenhorando-se do lugar humano.
Após essa exposição, o Diabo recebe a seguinte resposta de Deus, o princípio unificante do cosmos: a existência do pecado e sua disseminação não é novidade, já que a igreja divina o tenta suprimir pela virtude. A tendência divisora diabólica e a unificadora divina entram num litígio teológico opositivo, sem chegar a nenhuma conclusão: cada ideologia se mantém firme diante e contra a outra. Há a ironia da tentativa da fundação de uma igreja diabólica mais uma vez, pois Deus diz ao Diabo que seu sistema repousa sobre idéias antigas e vagas. Porém, não só a do Diabo: ambas as igrejas se repelem diante da oposição desarmônica entre pecado e virtude.
O Diabo retorna para a terra e começa a disseminar sua moral, fundando sua igreja nos vícios humanos, entre eles o egoísmo supremo. A separação ou discórdia entre os homens é uma outra manifestação do próprio Diabo, por sua faceta divisora e abismal. Num primeiro momento, o Diabo vê uma ampla aceitação e prática das novas virtudes, mas logo percebe que as antigas virtudes continuam sendo praticadas, ainda que às escondidas. A virtude torna-se pecado e o pecado torna-se virtude. O que se sugere aqui é que o sagrado não se restringe à igreja e à máquina eclesiástica, e também é independente da ideologia ou meio. A experiência de epifania do real se manifesta na arte, na religião, no pensamento, no amor, de maneira própria a cada um. O sagrado, dessa forma, habita a dimensão da existência humana e seu mundo, tornando toda vida sagrada. A frustração do Diabo foi perceber que o âmbito da vida e existência humana é mais radical e contraditória, são multiplicidades em coabitação e tensão. A doutrina de sua igreja não circunscreve a essência do homem por excluir a identidade da diferença, ilhando cada homem em sua subjetividade irreflexiva radical, agindo totalmente em proveito próprio e sem virtudes. O Diabo não compartilha e nem pode compartilhar da essência cindida do homem, de ao mesmo tempo estar sempre próximo do outro e distante, daí a impossibilidade de terminar com a solidariedade: o homem não pode ser só distante, mas está sempre em conflito consigo mesmo e com os outros.
Após essa descoberta, o Diabo inquire Deus sobre seu fracasso. Deus aponta a reversibilidade de virtude e pecado e como esse movimento configura a “eterna contradição humana”. O divino reunirá os opostos do diabólico na unidade tensional do homem.
A igreja não traz a libertação do homem, mas a fuga da igreja é que traz sua libertação. O conto localiza o sagrado no lugar propriamente humano e não em uma entidade destacada da realidade. As figuras de Deus e do Diabo, ainda que potências distintas, são unas, e só possuem no homem seu princípio e realização últimas. Em outras palavras, Deus e Diabo sofrem uma inversão e passam, de fonte do sagrado a uma das possíveis realizações do mesmo. Eles compõem, em conjunto, a contradição do homem. Aqui, a ironização dos deuses demove-os de uma perfeição e completude, por terem uma identidade e escopo bem delimitados e prontos. A inventividade humana supera as ideologias e identidades unitárias de Deus e do Diabo e consegue se situar em um intermédio, a escadaria entre a igreja das graças e prazeres e a rua dos eventos corriqueiros. Só a ética humana concilia Deus e Diabo e lhes garante o sagrado.
Para além do bem e do mal, “a morada do homem não tem controle, a divina tem”, como diz o fragmento 78, do pensador Heráclito. No conto, demonstra-se que a morada do homem não tem controle pelo ponto de vista dos deuses e demônios, e dessa forma decaem em sua estaticidade. O criativo, a abertura para experiências humanizantes do sagrado não repousa em aderir a uma seita ou conjunto de regras, mas em sua a capacidade de criar mundo. Caso contrário, a essência do homem e sua felicidade poderiam ser prescritas e descobertas, feitas paradigmas. É pela impossibilidade de fazer o homem se assemelhar a Deus ou ao Diabo que suas igrejas falham. O homem dá e tira sentido, é criador e destruidor. Nessa diferença radical se identifica cada homem consigo mesmo e com seus irmãos. Mas não é algo que já lhe é simplesmente dado: o homem se humaniza ao decorrer de sua vida, fazendo dela seu mais sagrado bem, por não estar delimitada, apenas esboçada.

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. 4ª ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.
ASSIS, Machado de. “A Igreja do Diabo”. In: Obra Completa. vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
CASTRO, Manuel Antonio de. O Acontecer Poético – A História Literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
______. Tempos de Metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon
Press, 1996.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A IGREJA DO DIABO

(brilhante conto de Machado de Assis, do livro Histórias sem Data. Rio de de Janeiro: Garnier, 2003,7a edição)

CAPÍTULO I



DE UMA IDÉIA MIRÍFICA



Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



II

ENTRE DEUS E O DIABO



Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.





Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS



Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.





IV

FRANJAS E FRANJAS



A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.