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domingo, 23 de novembro de 2008

Pela Igreja do Diabo

Aproveitando a deixa da última postagem, trago este ensaio, que dialoga com o conto do Machado.
Não há pretensão alguma de explicação ou mediação, apenas de tentar prolongar e manter o que ele diz.


A REINVENÇÃO DO DIVINO
Uma interpretação da questão humana em “A Igreja do Diabo”


A questão essencial de “A Igreja do Diabo” é a indefinição da essência humana em relação à divina, ironizada no texto pelo questionamento da instituição eclesiástica e do sagrado, do divino.
”A Igreja do Diabo” abre o livro de contos em que se encontra, chamado “Histórias sem Data”. Como diz o autor na “Advertência da 1.ª Edição”, o título não significa que se tratará de um amontoado de histórias não datadas, sem sua devida referência histórica de produção. “Histórias sem Data” significa histórias que se fazem e são feitas fora de um ponto no tempo, mas que acontecem num tempo próprio e originário. Não só é indeterminada, como gera as determinações. Dessa maneira, as histórias contadas se situam num plano mítico e misterioso, à maneira da volta à origem dos séculos efetuada por Brás Cubas em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que o regresso cronológico se transmuta em um mergulho às esferas originárias da existência e da realidade na iniciação com Pandora. Essas histórias não ocorrem num dia específico; sua historicidade decorre de sua permanência. São histórias que moldam o dia e tudo o que acontece nele.
No caso específico do conto, aquilo que é histórico se apresenta como a presença do sagrado consagrando a existência diária de cada homem, entre o divino e o diabólico. “A Igreja do Diabo” também torna significativo ser o conto que abre “Histórias sem Data”. Dentro da obra, o conto será o primeiro e também o criador dos demais, ao situar e fazer a gênese, entre Deus e Diabo, do homem contraditório e múltiplo. A imagem e dimensão da ordem cósmica tem seu correspondente na ordem dos contos no livro. Os contos posteriores, portanto, devem seu centro à primordial visão e construção da ambigüidade humana feita no conto inicial. Entretanto, estamos apenas mostrando o nexo entre o conto e o livro, a parte e seu todo. Como argumenta Ronaldes de Melo e Souza (2006), essa configuração tem respaldo em toda a obra machadiana, já que esta se caracteriza, no plano narrativo, pela configuração do narrador como ator dramático, que desempenha vários papéis, formando personagens e interpretações complexas do homem e do real.
Lembrando a raiz grega de história, historéo, que diz investigar, narrar e testemunhar, a ausência de data indica, primeiramente, a situação espaço-temporal indeterminada do que vai se narrar. Isso implica que cada história tem um historiador. No conto de Machado, esse jogo se faz através de um manuscrito beneditino, cuja história é recontada e ficcionalizada pelo narrador. O caráter radicalmente histórico se mostra no conto como criação e recriação: não há um fato verdadeiro, mas um acontecimento. A narrativa será conjugada a partir da perspectiva do Diabo, desde a idéia de fundar uma igreja até o momento final, quando Deus termina o processo de diagnose diabólica do homem.
Diferentemente de Brás Cubas, aqui será o Diabo que percorrerá os caminhos da descoberta da existência humana. Esse caminho de descoberta e tentativa de conquista será traçado pela idéia de montar uma igreja, análoga a oficial, mas que cultuasse ao Diabo e seus vícios defendidos, para ser a única igreja, a única religião:

— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Nessa reflexão do Diabo, incorporado pelo narrador, vemos o questionamento cômico da instituição clerical da igreja cristã, que perde todo seu ar solene e sagrado e se reduz a um conjunto de procedimentos. Tanto a ideologia cristã, quanto a diabólica aqui são intercambiáveis: dividem o mesmo lugar (igreja), os mesmos preceitos (Escritura). No fundo, o autor identifica as demais religiões, como sistemas teológicos que arrolam para si a verdade fundamental sobre o além-humano e o sagrado. Ora, pela idéia do Diabo, questiona-se se a religião se identifica com a transformação do sagrado e do espírito humano na igreja, que reúne como símbolo toda a materialidade da igreja secular. A igreja não indica a presença de Deus, mas antes sua ausência. Entendemos essa relação quando pensamos o cemitério, que faz presente uma ausência de vida; como sua raiz grega indica (LIDDELL & SCOTT, 1996), o cemitério marca algo (os mortos) para serem mantidos (da vida). A busca do Diabo consiste em fazer de sua igreja e sua teo-cosmo-socio-logia a reunião uniforme e sincrética da existência humana, exatamente porque se espelha nele, o Diabo. Por esse motivo é que o narrador ironizará ambas as igrejas e suas respectivas virtudes, porque não têm fundamento no homem concreto, mas antes em suas próprias idealidades divinas e sobre-humanas. O método ficcional para tal, como apontamos, é a narração a partir da visão das entidades divinas.
A intenção do Diabo de se separar e dominar as demais religiões provém não só da ironia do autor quanto à identidade profunda delas, mas de uma requisição do próprio Diabo expressa em sua etimologia: dia-ballein diz dar-se numa separação, numa cisão. Porém, como o conto mostra em sua consumação, o princípio de separação é também o mesmo de reunião. Fundar uma nova religião é, ainda, fundar uma religião, equivalendo-se todas, assim. O Diabo gera não só uma separação entre a sua religião e as demais, mas também entre a essência do homem em seu sistema e a essência do homem das demais. Para tal, dirige-se a Deus, para anunciar e impor-lhe sua noção de homem:

— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
(...)
— Só agora é que concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás dela virão as de seda pura...

Após afirmar, pela referência intertextual à figura mítica de Fausto, que não está a disputar um homem, mas a essência de todo homem, o Diabo explica a implementação de seu sistema criticando a ideologia cristã. Para suplantar as virtudes correntes, inverterá os seus preceitos. Se antes as virtudes cristãs se baseavam numa recusa à vontade e negação do corpo, o Diabo, por sua natureza, negará a negação, preconizando agora todas as “virtudes” terrenas, da vontade e do corpo. A metáfora das virtudes, as rainhas e suas capas prevê a possibilidade de tornar diabólicas as virtudes cristãs, de que dentro de todo virtuoso existe um pecador, aguardando ter sua capa de virtude descida e vestir a do pecado, assenhorando-se do lugar humano.
Após essa exposição, o Diabo recebe a seguinte resposta de Deus, o princípio unificante do cosmos: a existência do pecado e sua disseminação não é novidade, já que a igreja divina o tenta suprimir pela virtude. A tendência divisora diabólica e a unificadora divina entram num litígio teológico opositivo, sem chegar a nenhuma conclusão: cada ideologia se mantém firme diante e contra a outra. Há a ironia da tentativa da fundação de uma igreja diabólica mais uma vez, pois Deus diz ao Diabo que seu sistema repousa sobre idéias antigas e vagas. Porém, não só a do Diabo: ambas as igrejas se repelem diante da oposição desarmônica entre pecado e virtude.
O Diabo retorna para a terra e começa a disseminar sua moral, fundando sua igreja nos vícios humanos, entre eles o egoísmo supremo. A separação ou discórdia entre os homens é uma outra manifestação do próprio Diabo, por sua faceta divisora e abismal. Num primeiro momento, o Diabo vê uma ampla aceitação e prática das novas virtudes, mas logo percebe que as antigas virtudes continuam sendo praticadas, ainda que às escondidas. A virtude torna-se pecado e o pecado torna-se virtude. O que se sugere aqui é que o sagrado não se restringe à igreja e à máquina eclesiástica, e também é independente da ideologia ou meio. A experiência de epifania do real se manifesta na arte, na religião, no pensamento, no amor, de maneira própria a cada um. O sagrado, dessa forma, habita a dimensão da existência humana e seu mundo, tornando toda vida sagrada. A frustração do Diabo foi perceber que o âmbito da vida e existência humana é mais radical e contraditória, são multiplicidades em coabitação e tensão. A doutrina de sua igreja não circunscreve a essência do homem por excluir a identidade da diferença, ilhando cada homem em sua subjetividade irreflexiva radical, agindo totalmente em proveito próprio e sem virtudes. O Diabo não compartilha e nem pode compartilhar da essência cindida do homem, de ao mesmo tempo estar sempre próximo do outro e distante, daí a impossibilidade de terminar com a solidariedade: o homem não pode ser só distante, mas está sempre em conflito consigo mesmo e com os outros.
Após essa descoberta, o Diabo inquire Deus sobre seu fracasso. Deus aponta a reversibilidade de virtude e pecado e como esse movimento configura a “eterna contradição humana”. O divino reunirá os opostos do diabólico na unidade tensional do homem.
A igreja não traz a libertação do homem, mas a fuga da igreja é que traz sua libertação. O conto localiza o sagrado no lugar propriamente humano e não em uma entidade destacada da realidade. As figuras de Deus e do Diabo, ainda que potências distintas, são unas, e só possuem no homem seu princípio e realização últimas. Em outras palavras, Deus e Diabo sofrem uma inversão e passam, de fonte do sagrado a uma das possíveis realizações do mesmo. Eles compõem, em conjunto, a contradição do homem. Aqui, a ironização dos deuses demove-os de uma perfeição e completude, por terem uma identidade e escopo bem delimitados e prontos. A inventividade humana supera as ideologias e identidades unitárias de Deus e do Diabo e consegue se situar em um intermédio, a escadaria entre a igreja das graças e prazeres e a rua dos eventos corriqueiros. Só a ética humana concilia Deus e Diabo e lhes garante o sagrado.
Para além do bem e do mal, “a morada do homem não tem controle, a divina tem”, como diz o fragmento 78, do pensador Heráclito. No conto, demonstra-se que a morada do homem não tem controle pelo ponto de vista dos deuses e demônios, e dessa forma decaem em sua estaticidade. O criativo, a abertura para experiências humanizantes do sagrado não repousa em aderir a uma seita ou conjunto de regras, mas em sua a capacidade de criar mundo. Caso contrário, a essência do homem e sua felicidade poderiam ser prescritas e descobertas, feitas paradigmas. É pela impossibilidade de fazer o homem se assemelhar a Deus ou ao Diabo que suas igrejas falham. O homem dá e tira sentido, é criador e destruidor. Nessa diferença radical se identifica cada homem consigo mesmo e com seus irmãos. Mas não é algo que já lhe é simplesmente dado: o homem se humaniza ao decorrer de sua vida, fazendo dela seu mais sagrado bem, por não estar delimitada, apenas esboçada.

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. 4ª ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.
ASSIS, Machado de. “A Igreja do Diabo”. In: Obra Completa. vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
CASTRO, Manuel Antonio de. O Acontecer Poético – A História Literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982.
______. Tempos de Metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon
Press, 1996.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.

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