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Ponto de discussões filosóficas de ouvintes do Lógos, recolhedoras do aberto...

... porque o invisível (adelós) por vezes fica visível (dêlos), pela escuta do que se diz com uma palavra.



quarta-feira, 8 de outubro de 2008

QUE É METAFÍSICA? - DE MARTIN HEIDEGGER


HEIDEGGER, Martin. “Que é Metafísica?” (trad.: Ernildo Stein), in: Os Pensadores, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª edição.



Observações iniciais: Trata-se, o texto da preleção, de sua primeira aula na Universidade de Freiburg, de 24 de julho de 1929, sendo a 3ª publicação de Heidegger na maturidade (a partir de Ser e Tempo). Neste texto, a metafísica não é somente o tema, mas o próprio proceder do pensamento, que se interroga metafisicamente. Essa interrogação metafísica parte da existência do interrogante em questão: no caso, os homens de ciência na universidade – ali, na relação do homem com a ciência, ele encontra o nada, e não dá mais uma definição do que seja metafísica. Tendo levantado muitas objeções, H. acrescenta, posteriormente, como resposta, um posfácio (1943) que orienta a leitura da preleção, e uma introdução (1949), que recapitula seu pensamento em relação à preleção na época.

ESTUDO DO TEXTO

O Desenvolvimento de uma Interrogação Metafísica
Quando se pergunta pela metafísica, a resposta própria deve nos conduzir à metafísica, para isso, tanto a pergunta quanto a existência de quem questiona devem se mover no horizonte do que se questiona. Nossa existência é pautada pela ciência. A ciência é o modo de estar no mundo em que o homem se relaciona com o ente. Sendo o ente o que é algo e não simplesmente nada, a ciência, para delimitar seu objeto, precisa daquilo que rejeita: o nada.

Elaboração da Questão
Mas perguntar pelo nada não pode ser perguntar por alguma coisa. O nada é a própria a origem da negação do ente. O entendimento, que articula sempre negação e afirmação (o que algo é e o que algo não é), depende do nada, não podendo, portanto, determiná-lo. Quando perguntamos por algo, buscamos algo que nos falta. Mas só percebemos o que falta a partir do que se apresenta. Então, por outro lado, a negação do ente pressupõe a presença da totalidade do ente. A totalidade do ente se dá como tédio, quando tudo é indiferente, ou como alegria pela presença, quando tudo é pleno.. O nada se re-vela na angústia que, diferente do temor (que é temor de algo), é como que um temor diante de nada, quando não há apoio, ficamos sem chão e tudo parece nos escapar. Quando tudo nos escapa a angústia vêm ao nosso encontro, re-velando o nada. Na angústia, que acontece com o nada?

A Resposta à Questão
A angústia não apreende o nada: mas o re-vela na totalidade do ente. Não como se existisse a totalidade do ente e ao lado dela o nada. A angústia re-vela o nada porque o nada aparece como a totalidade do ente, sem se confundir com ela. O nada nadifica, mas isto não significa que o nada acabe com a totalidade do ente, mas sim o contrário, nadificar, “afirmar” o nada em que com-siste (é com) a totalidade do ente: é do nada que o que “vem a ser” vem: presença é estar suspenso no nada – apenas pelo nada podemos com-ceber (com o nada) o ente. O nada permite o pensamento – não é o que não se converte em objeto do pensamento, mas a possibilidade de se pensar. A negação, portanto, não origina o nada – mas o contrário – porque negação nega algo, e tudo que vem a ser algo, vem a ser o que é do nada (é com o nada: com-siste em nada). O nada é originário da negação . Esta angústia que re-vela o nada como o mesmo da totalidade do ente não ocorre nem é controlada por vontade humana (por isso mesmo é angústia) – é uma iminência de sermos convocados a nos percebermos suspensos no nada. Portanto, somos convocados ao pensamento, antes de o desejarmos . Quando pensamos a presença (a nossa mesma), suspensa no nada, “ultrapassamos” a totalidade do ente, nela mesma: isso se diz “trans-cendência” (tans-ente): meta-física.
Contudo, a metafísica clássica concebe o nada somente a partir do ente, e não também o ente a partir do nada : ex nihilo nihil fit. A dogmática cristã nega isso, mas de uma maneira que opõe o nada à totalidade do ente: Deus cria do nada. Deus (o fundamento, o ente supremo, o verdadeiro ser) é oposto ao nada, que é não ser. Em toda metafísica, de uma forma ou de outra, o nada é oposto ao ente verdadeiro, ao ser. Hegel equivale o ser ao nada, acabando com esta oposição, mas o faz na medida em que os iguala na sua indeterminação . Quando de fato o co-pertencimento de ser e nada se resguarda numa diferença fundamental: o ser sendo é finito, e não sendo é infinito – o nada sendo é infinito, e não sendo é finito: ser e nada são o mesmo mas exatamente pela diferença radical de sua co-determinação, e não de sua indeterminação. Daí o outro sentido que se pode dar ao axioma da metafísica antiga: ex nihilo nihil fit – do nada o nada se faz – ou seja – a totalidade do ente (que o nada per-faz) com-siste em nada.
A existência científica se caracteriza pela busca. Busca-se algo que falta. A falta só se percebe a partir do que se apresenta. O que se apresenta se apresenta a partir de nada. Quando se pensa o que se apresenta em sua consistência com o nada, pensa-se a transcendência, e não se pensa somente algo. A este pensar chamamos metafísica, a filosofia em sentido pleno. A metafísica, filosofia, pensamento, permite então o “por quê” que orienta a busca, na medida em que pensa o que se retrai no que se apresenta. A ciência depende, portanto, da metafísica para ser o que ela é. A nossa existência, na media em que é ex-sistênca, o é a partir de ser, o que significa dizer, é, sendo suspensa no nada. A metafísica não é portanto nem uma disciplina dentre tantas, nem uma especulação vaga, mas, na medida em que é transcendência , ela é nossa própria condição. Por isso Platão diz: “Na medida em que o homem existe, acontece, de certa maneira, o filosofar.” Mas o filosofar também não é um acontecimento automático, biológico , e sim o esforço extremo de sempre a todo momento tentar um salto que nos tira do automatismo das relações somente com o ente e nos lança onde já estamos: no nada. Este salto se dá, portanto, em in-sistir na pergunta: porque há o ente e não antes o nada?
POSFÁCIO

A ciência calcula o ente, a metafísica entifica o ser, e o pensar questiona o ente no ser. Enquanto a resposta a uma questão nos dá apenas o ente, ela não é uma resposta pensante. A resposta pensante é aquela que permanece, ao responder, na abertura da questão, isto é, ela mostra no ente que se dá o ser que se retrai.
Assim, em relação ao que se pensou nesta conferência, é errado objetar, concluído que: 1. trata-se de um niilismo, de afirmar que o nada é o único “objeto” do pensar; 2. de uma filosofia da angústia que elege um determinado sentimento que paralisa a ação da vontade do homem; 3. é irracionalista, contra a lógica, porque é baseada em sentimentos.
1. O que a preleção quer pensar é a referência fundamental entre ser e nada, em que o nada não é a negação do ente, mas o originário do ente que, sendo, oculta-se como nada e mostra-se como ente, isto é: o ser. 2. É angustiante o que nos foge ao controle, mas isso não paralisa nossa ação, porque nos convoca ao agir mais pleno, que requer a coragem para se pensar aquilo que não se domina. Mas angústia e coragem não são aí sentimentos, mas um próprio corresponder à com-vocação do ser que pro-voca o pensar. 3. a lógica é, originariamente, a experiência grega do ser. Como experiência do ser, ela nunca é somente uma relação entre entes: ele é onto-lógica, em que a reunião do logos não é um resultado. Nem por isso é menos rigoroso este pensamento ontológico fundamental, já que o rigor não é outra coisa que o esforço para ser ater a todo tempo ao fundamental do que se pensa.
O cálculo é apenas exato, não mais rigoroso: converte tudo em números, em que tudo se consome na progressão da contínua enumeração para cada vez mais de cada vez menos. Assim tem se a impressão de que se produz (cada vez mais) quando na verdade se consome (cada vez menos) – produção e consumo é o princípio do cálculo. O pensamento dito fundamental não apenas responde, mas corresponde ao apelo de que se origina – entregue à exigência deste apelo (sacrifício), este pensamento permanece aberto ao que não cessa de ser (liberdade), não se encontra preso ao que tão somente já é. Este apelo do ser é o silêncio de sua manifestação – este silêncio é a questão originária – que a todo tempo cala e exige uma resposta: linguagem. Corresponder a este apelo é a origem da palavra humana.
Renunciar ao ente em prol da abertura do ser: o sacrifício que liberta. Por isso, o sacrifício não admite o cálculo de sua utilidade ou inutilidade (filosofia/arte), apenas é algo incontornável para se consumar o que se é, para vir a ser. Este pensamento, dócil ao apelo do ser, se mostra como um cuidado para que a verdade do ser chegue à linguagem na palavra. “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado.” Poetar e pensar não são a mesma coisa, mas se co-originam ao re-conhecer, isto é, nascer-com sempre e a cada vez, que “O nada, enquanto o outro do ente, é o véu do ser.”

INTRODUÇÃO

Retorno ao Fundamento da Metafísica

Quando Descartes evoca a imagem estóica da Árvore da Filosofia, esquecendo, como os próprios estóicos, de ao menos mencionar o solo, mostra o completo esquecimento do ser na filosofia. Pois se a filosofia se propõe a pensar o ente em seu ser, ela de fato pensar o ser enquanto ente. Como origem e força de tudo que vêm a ser o que é, tudo o que emerge à luz da presença, o ser seria o próprio solo de onde brota e se nutre a Árvore da Filosofia. “A árvore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raízes da metafísica.” (253) O pensamento que pensa o ser, embora supere, não rejeita a metafísica. “A metafísica permanece a primeira instância da filosofia. Não alcança, porém, a primeira instância do pensamento.” (254). A metafísica é própria do homem na medida em que se o compreende como animal racional.
Mas neste pensamento do ser, de fato, é o ser que vem ao encontro do pensamento: é só a partir do apelo do ser que se lhe pode corresponder. Este pensamento não se constitui, contudo, numa modificação epistemológica da filosofia: não é uma nova disciplina no corpo doutrinário da filosofia. Não é também a descoberta de um novo fundamento, de uma base realmente inconcussa até agora não descoberta. O que se decide com esse pensamento é o pertencimento do homem ao ser, o ser humano, se esta relação poderá se abrir ou se permanecerá fechada numa determinação metafísica. Isso porque a metafísica, claro, pensa o ente, sim, a partir do desvelamento do ser, mas o representa e assim cala sua verdade, que é o desvelamento cuja essência é o velamento. O velamento permanece impensado na verdade do ser e no ser da verdade. Não ser quer retornar aos pré-socráticos, mas pensar este velamento que desde então não se enunciou – a metafísica não responde esta questão porque sequer a coloca como questão.
Portanto, o apelo do ser não se dá pela maior eficiência filosófica do homem, mas apenas no momento propício. O pensar é dócil ao ser e não o contrário, de modo que as considerações sobre a sua utilidade para a vida social do homem não têm sentido, porque o homem só é homem, tem vida social e cogita utilidades na medida em que pensa. A este pensar o ser, assim, convoca apenas e de modo pleno para o agir essencial que é pensar. Isso não significa que se negligencie o homem, porque a questão do ser envolve de modo especial o que o homem é. Isso implica questionar os conceito de homem como sujeito e como animal racional.
Presença (Dasein) é o nome desta referência do ser ao homem, em meio à abertura do velamento. Embora a palavra Dasein signifique na metafísica: existentia, actualitas, realitas, objetividade e existência corriqueira do homem, que repete o significado metafísco. Mas presença não é um outro nome para consciência (fenomenológica), nem a substituição de um elemento subjetivo por outro, antes, designa o âmbito da verdade do ser. Para as relações do homem, em Ser e Tempo, usa-se existência (Existenz) que, pensada, re-vela Dasein. Esta existência não é nem um externar-se de um substância nem um manifestar-se de um sujeito. Ela é um in-sistência, que é o cuidado e o esforço de se manter atento a e no âmbito de pensar – corresponder – à verdade do ser, numa tal correspondência que nos mostra o velamento como nosso horizonte: ser para a morte. “O ente que é ao modo da existência é o homem.” (257), se considerarmos que só existe na medida em que insiste. O que quer que o homem seja ele é sendo, isto é, no, pelo e para o ser.
Insistir articular sempre permanência (insistir como permanecer) e movimento (insistir como agir): portanto a experiência própria da verdade do ser é Tempo. Tão radical é esta experiência, que os nomes iniciais e finais para o ser, na metafísica, evocam o tempo: enérgeia e eterno retorno do mesmo. Compreender é esta experiência de ser e pensar que se dá na abertura . Enquanto abertura de um velamento, este âmbito da compreensão se chama sentido. O velamento é o que a metafísica não pensa quando pensar o ser e, assim, escapando-lhe o sentido, de fato pensa o ser apenas enquanto é, enquanto ente. Ontologia fundamental, portanto, não é um estudo de um outro sendo metafisicamente compreendido, só que mais fundamental. Quando a conferência se encerra com a pergunta pelo nada, que foi retirada de Leibniz e ganha no contexto da conferência um outro sentido, quer se indicar isso: que o sentido do nada que é-com o ser é outro do nada metafísico que é o mais simples e fácil conceito – é o nada que é a questão não só pela origem e mas pelo fim da metafísica.

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom!