Falar é uma condição humana, não depende de nossa vontade, nem de nossa falta de vontade. A essência da linguagem, assim, se articula com a essência humana. Essência, aqui, não diz da representação do traço universal, mas do vigor da coisa, na medida em que acontece sua vigência. A essência é um acontecimento da coisa em seu vigor. O que se busca, aqui, não é fundar a linguagem noutra coisa, nem fundar outra coisa na linguagem. Não se considera a linguagem como uma exteriorização de um interior, nem como sinalização de um exterior mas, tampouco, ao se colocar tal definição há muito vigente em questão, não se busca uma nova definição de linguagem a ser assumida e aplicada. Tentaremos, no que se diz, ouvir a linguagem mesma. Mas a linguagem não se esgota no dito. O dito que não se esgota, que fala de modo genuíno, é o poema[1]. O poema, por sua vez, é genuíno não pelo autor, mas por ser capaz de “negar a pessoa e o nome do poeta.” (13)
O poema diz que “o que acontece lá fora toca o que acontece dentro da morada humana”[2] (13). O poeta e o pensador seriam os que “(...) caminham errantes, por veredas escuras, envoltos pela estranheza.” (14), ou seja, aventuram-se no ser e, chegando à morada dos homens, fazem luzir ali o extra-ordinário. O poema nomeia estas coisas. Nomear não é distribuir títulos, mas e-vocar, trazer para a palavra a coisa em seu sentido. Nomear não é materializar a coisa, mas é torná-la con-creta, ou seja, é e-vocar o sentido, com-vocar. Com-vocar é e-vocar a presença, in-vocando a ausência. A coisa, na e-vocação poética, vigora numa ausência, desta forma, aproxima-se dos homens (que também vigoram numa ausência, sem chão). O poema é o que de fato aproxima as coisas dos homens e os homens às coisas, sob o céu e sobre a terra, diante do extra-ordinário, do sagrado. As coisas nomeadas poeticamente, portanto, são “gestos de mundo”.
Em seguida, o poema evoca “a árvore dos dons”, cujas raízes se ocultam na terra e os ramos se erguem para os céus. Ela simplesmente surgem, sem porque, trazendo um dom extraordinário (dourado – o brilho que não morre, não enferruja). Esta árvore (mundo - linguagem) em cuja sombra habita o homem, a quem ela dá o fruto (coisa - poema). O mundo com-cede coisas. “Mundo e coisa não existem um ao lado do outro (...). Eles se interpenetram.” (19) O meio dos dois é o entre[3] que os sustenta nesta referência fundamental. Este entre, quando os une, os separa – é di-ferença, ou seja, não se dá como um terceiro elemento posterior, mas é aquilo que se dá como e con-põe e sustenta (ou seja, entreabre) esta referência fundamental. “A di-ferença não é distinção nem relação. (....) é propriamente o que, num chamado, se chama[4] quando coisa e mundo são evocados.” (20). Assim “A primeira estrofe chama as coisas para vir (...). A segunda estrofe chama o mundo para vir (...). A terceira estrofe chama para vir o meio de mundo e coisa: o suporte da intimidade.” (20)
As imagens são: a dor, que petrifica a soleira, na chegada do viandante quieto. A soleira é o entre de fora (ser, floresta) e da casa (mundo, clareira). A dor é que lhe dá solidez – porque dilacera e corta, mas mantém o dilacerado reunido em si[5]. Esta dor é o entre, é a diferença que reúne coisa e mundo e, mais ainda, porque realça o brilho do interior da casa (a clareira), em que aparecem pão e vinho. Chega-se a esta casa na quietude. Quietude não é ausência de agitação e de barulho. Isso porque ela é o que deixa cada coisa ser cada coisa. Assim, a quietude é o a soleira, a diferença, que tudo convoca para o entre, o rasgo da soleira. Convocando, reunindo e separando, dando passagem, a quietude é o mais pleno chamado e movimento. Esse chamar quieto (silêncio) é a essência da linguagem que “(...) faz uso da fala dos mortais, no intuito de torná-la sonora como consonância do quieto para a escuta dos mortais.” (24). Portanto, como o dizer deste chamado, o poema não é um falar elevado, mas o falatório é que é um “(...) poema esquecido e desagastado, que quase não mais ressoa.” (24). Poema não é um objeto literário, nem um gênero oposto à prosa, se esta não for prosaica e, mesmo neste caso, sem que se manifeste seu pleno vigor, “Cada palavra falada pelos mortais fala dede essa escuta, como essa escuta. (...) Correspondendo duplamente à linguagem, ou seja, extraindo e respondendo, é que os mortais falam.” (25)
(os números entre parênteses no corpo do texto se referem às páginas do ensaio de onde foram tiradas estas citações diretas.)
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. (tradução Márcia. S. C. Schuback). Petrópolis: Vozes, 2004, 2a edição.
[1] Heidegger toma o poema de Georg Trakl sem maiores explicações. Não se trata de fundamentar, mas de ouvir a linguagem. O poema é assim:
Uma tarde de inverno
Na janela a neve cai,
Prolongado soa o sino da tarde.
Para muitos a mesa está posta
E a casa bem servida.
Alguns viandantes da errância
Chegam até a porta por veredas escuras.
Da seiva fria da terra
Surge dourada a árvore dos dons.
O viandante chega quieto;
A dor petrificou a soleira.
Aí brilha em pura claridade
Pão e vinho sobre a mesa.
[2] O paralelo aqui é o ser e o sendo, a floresta e a clareira.
[3] Entre, em latim, “inter”, equivale ao “unter” em alemão. Em português, há a equivalência com “em meio a” e “através de”, que são muito ricas.
[4] Ou seja, in-voca.
[5] Esta é uma bela imagem de H. Quando perdemos alguém, somos separados pela dor, embora, em nossa separação, permaneçamos unidos na dor – neste caso, inclusive a dor reúne o presente e o ausente: é a dor da morte, do ser-para-a-morte, da existência, do galgar o ser atendo-se ao ente, do ser e estar lançado no mundo, coisas muito difíceis, perigosas, dolorosas.
4 comentários:
Me encontro e me perco em suas questões sobre a linguagem. Isso é realmente encantador!
Não são minhas, nem de Heidegger. São nossas.
Encantador é poder tentar fazer filosofia na era dos reality shows.
Estou discordando, para não perder o hábito.
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